quarta-feira, 20 de julho de 2011

Água de Talha

   Este Rio Grande sabe ser frio no inverno, mas que também entende de calor no verão, ah, isso entende.
   Aquele era um verão dos brabos. Ao meio-dia tudo parava. O bafo quente subindo da terra punha o horizonte num treme-treme. O gado assoleado se metia nos matos, onde não ficava muito tempo por causa das mutucas ou se metia no açude para ficar de molho. Até os bugios interrompiam a gritaria na Restinga.
   O parado daquele silêncio só era quebrado pelas caturritas. Bichinhos desgraçados: faziam um alarido pior do que uma multidão de comadres lavadeiras.
   Com pés-de-chumbo o pessoal ia estendendo pelegos à sombra dos cinamomos, na hora de sestear, buscando um arzinho fresco, mas, nada.
   Em dias assim o grande movimento era na cozinha, pois água de poço cavado, guardada em talha de barro, esta sim é a que um gaúcho merece beber. Nem precisa dessas frescuras de cloro, filtro e quetais.
   Já devia ser umas três e pouco da tarde, quando dei de mão numa lata de azeite vazia transformada em caneca e me fui tomar água mais uma vez. Por ser apenas um arremedo de gaúcho, para alcançar a água, mesmo trepado num banquinho de três pernas, era obrigado a encostar o peito na talha.
   Quando me encostei deu-se a porcaria. Um marimbondo que também viera tomar a sua água achou que era covardia eu largar todo o meu peso em cima dele. Em vingança ou defesa, isso seria esclarecido pelo seu advogado, sentou-me o ferrão. E bem na mamica esquerda.
   Abri os tarros.
   "O que foi, o que não foi?" - era a preocupação dos adultos.
   - Um camoatim me mordeu lá na talha. Bem aqui na mamica.
   - Ih, não chora. Homem não chora por causa da mordidinha dum marimbondo!
   - É, vocês não choram porque não foi na mamica de vocês!
   - Pára de fazê manha e vem comê melancia! Tu nem sabe como tá boa! - tentavam desviar a atenção.
   Por me achar homem ou por querer melancia, parei com o berreiro e arrematei:
   - Tá doendo bastante, mais eu não tô chorando mais, viu?
   Com pose de macho, só de brabo, fui de novo buscar minha água na talha, agora sestroso, primeiro espantando os camoatins. Já para beber notei qualquer coisa estranha na goela. Logo senti uma coceira e peguei a pigarrear. Sem dar muita bola, pois era um baita macho, resolvi voltar para junto dos comilões de melancia e quando apareci achei que devia ter virado um fantasma: todos me olhando com cara assustada.
- O que é isso, Pança? - perguntaram, como se eu pudesse saber.
- Não sei. Uma comichão na goela.
   De vereda comecei a tiritar de frio.
   Estava pronto o reboliço.
   - Não foi um camoatim que mordeu ele. Deve ter sido um marimbondo caboclo, desses que comem aranha. Tá envenenado!
   Assim, na minha frente, sem disfarçar e com entonação significando: "Tá morto!"
   Enrolaram-me numa toalha, para me agasalhar por causa do tremor. Buscaram água e começaram a me lavar os pés. Tinha que ir ao doutor bem asseado, mesmo que o tempo perdido com a higiene significasse a diferença entre a vida e a morte.
   O vô Donato apareceu com uns específicos de sua farmacinha homeopática e me empurrou goela abaixo. Diga-se que de tais milagrosos comprimidinhos, numa de minhas artes tomara um vidrinho e meio, porque eram adocicados e seus grânulos pareciam o nosso sagu, nada sofrendo pela superdose, a não ser a frustração de não poder consumir uns dez daqueles vidrinhos .
 
   Aí alguém propôs orarem por mim.
   "Ih, tá encardido" - pensei, numa associação com o estado dos meus pés. E continuei pensando "Vamos decidir isso duma vez".
   - Eu vô morrê?
   - Não, capaz! É só um tremorzinho!
   Um não mui fraquito, que só serviu para me aumentar a tremedeira, agora de medo.
   O meu irmão Paulo foi despachado no cavalo Brilhante, em pêlo, para chamar o seu Armando, com o seu jipe; um peão agarrou o rumo da estrada, a ver se atacava o ônibus das quatro, o Santa Maria-Jaguari.
   Todo aquele corre-corre só podia significar que eu estava assim, vai-não-vai.
   O Paulo volta dizendo que o seu Armando estava em Santa Maria. Mais um pouco e chega o peão avisando que o ônibus já passara.
   Alguém começou a chorar. O Vô apareceu de novo, agora com um remédio que ninguém ainda experimentara ali na fazenda. Era para mordida de cobra. A mãe não queria que me desse, pois se os seus efeitos eram desconhecidos num adulto, "imagina o que não pode fazer pruma criança?"
   Mas o que se havia de fazer? Sem alternativa, deram-me a dose do tal contraveneno. Além de tiro e queda contra "mordedura de serpentes venenosas", possuía eficácia total contra mordida de "cão danado ou hidrófobo", só para não dizer cobra e cachorro-louco, termos vulgares que não impressionariam. A bula do dito remédio, conforme constatei quando me amansei com as letras, era cheia de cartas atestando a eficácia contra os males que combatia, com a infalível expressão "firma reconhecida na forma da lei".
   As orações prosseguiam e agora já não me lavavam somente os pés, decerto pensando "se morrer, que seja desencardido". Enquanto me davam o banho morno o inchaço dos beiços, orelhas e nariz, bem como as bolotas que tinha por todo o corpo, tipo encostado de urtiga começaram a ceder. Como não se podia garantir a duração da melhora, o Vovô apareceu com outro infalível tratamento, como sempre propunha para qualquer caso: escalda-pés, mas alguma alma caridosa salvou-me do banho-maria.
   Pois continuei melhorando. Aliás, rapidito no mais. Em menos de uma hora já andava faceiro pelos galpões, aproveitando a fresca da tardinha e na hora em que todo o mundo enveredou para o açude-da-frente, lá estava eu com o pé que era um leque, mas nunca que me deixaram ir para a melhor coisa do dia, o banho de açude.
   E esta foi a seqüela mais grave daquele perigoso negócio de edema de glote.

Nota do blogueiro:

   Esta é mais uma das 47 aprontações do piá de S. Vicente. Todas elas estão nas cento e quarenta e três páginas do livrim "Lembranças de Guri", que pode ser comprado por apenas R$20,00, mais R$13,00 de remessa PAC pelo correio.
   Cid Maestrini: o teu livro já seguiu em 19/07.  Para acompanhar pela internet: Objeto ... PB765265845BR. Foi pela modalidade PAC, em vez de Sedex, pois o Sedex de R$13,00 é só para o RS. Aí para Minas ficaria em R$40,00 e poucos, o dobro do livro... O previsto é de quatro a seis dias para te entregarem. Se gostar podes falar no blog. Não gostando, fale só para mim, mas não aceito devoluções ... ih, ih, ih. Ah, até aceito, mas não devolvo os pilas ...

   Oséias: estive duas vezes em Porto Alegre, inclusive com o livro, mas não pude te procurar, porque meu irmão foi hospitalizado e isto desprogramou todo o meu tempo.
   Acho que vai ter que ser pelo correio, mesmo.
   Os outros cinco milhões de leitores, a Editora Lambe-Lambe está atendendo pelos fones nove meia, meia nove, meio mole, todo mole ...

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