domingo, 20 de junho de 2021

Cavalgada a Porto Alegre

 



Mal tinha cantado o galo,
Inda era madrugada,
Já tinha dado a mateada
E encilhava o cavalo.
Esse pingo de que falo,
Exige muita atenção,
Todo o cuidado do peão.
O descuido de um segundo
E o quera troca de mundo,
Pois o pingo é um avião.

Por dias tinha ventado.
Eu carecendo voar,
Esperando a madrugar.
(Como não sou aloprado,
Se o voo é arriscado,
Só faço na precisão.
Nunca é demais precaução.
Assim, se o vento tá forte,
Não vou cutucar a morte
Só pra bancar o machão.)

Na feita, tava flaquito;
Pouca nuvem ou cerração.
Pensei: "É esta ocasião.
Vou sair num trotezito,
A Porto Alegre, solito,
A partir de São Vicente.
(Se não sirvo pra valente,
Covarde não é minha'lma.)
Aquela manhã tão calma.
Pro meu voo era um presente.


Ventinho Leste de proa
Avagarava meu trote,
Mas não havia pinote.
A marcha rendia boa.
Para o piloto isto soa
Como milonga bem feita,
Que o compositor ajeita,
A guitarra dedilhando.
Sou pajador, e pajando
A estrada nunca se estreita.





Passei por Santa Maria,
Em Restinga fiz retrato.
E prosseguindo o relato,
Tudo como eu queria,
Num tapa pra já que eu via
A silhueta de Cachoeira,
Terra de minha parceira.
Só parei pra desaguada
E prosseguir na jornada
Antes que viesse a pauleira.


Devidamente aliviado,
Dei-lhe as esporas no flete.
No causo, era a manete.
Prá já tinha decolado
E para o Leste aproado.
Voar assim não é fardo
Na calma e sem retardo,
Bom pingo não desaponta:
E quando me dei por conta
Já sobrevoava Rio Pardo.
  
                                                                       

 
Velha capital Farrapa
À beira do Jacuí,
Tirei retrato e, dali
Ao destino era um tapa,
Como mostrava o mapa.
Embaixo, sacolejei
"Vou subir", então pensei,
E a coisa se acalmou
O corredor se alisou
E por Taquari cruzei.




Montenegro, de vereda
Pousei, outra desaguada.
Explico tanta mijada
Se não a história enreda
E a coalhada se azeda:
É que numa ocasião,
Por falta de hidratação
Quase que me apaguei.
Como daquela escapei,
Agora tenho cuidado,
Tomo líquido adoidado
E ainda não me molhei ...

Dali pra Gravataí
A distância era pouca,
Mas cada térmica louca,
Que não tinha no Gibi,
Até o garrão sacudi,
Mas pousar é que era o caso;
Passar a rede num raso
E mergulhar com vontade,
Mantendo a tranquilidade,
Sem adianto e sem atraso.

Mesmo estando cansado,
Fiz o que manda o manual.
Comandei o meu bagual
Dentro do programado.
Pousei curto, amanteigado,
Nem precisei usar relho.
Guardamos o aparelho.
Pensei: "A missão cumpri.
Se não sirvo pra guri,
Sirvo pra piloto

E VELHO...



 

sábado, 5 de junho de 2021

O Avião que Ficou


 

         Num distante dia de outono ou inverno do ano da Graça de mil novecentos e sessenta e dois um grupo de crianças, na falta de coisa melhor a fazer, comia bergamotas nos fundos da Fazendola (ex-fazenda) Bom Retiro,  no  desconhecido e antes denominado município de  São Vicente, naquele dia chamado General Vargas, futuro São Vicente do Sul ...

         Eis que de repente, sem prévio aviso, começa uma ronqueira de motores possantes fazendo eco na serrania para as bandas da Vila Mata.

         Aquele piazedo até estava acostumado com ronco de motores de avião, pois dita ex-fazenda, agora pouco  mais do que uma chácara por causa da divisão entre os herdeiros, estava localizada bem na rota dos aviões de linha comercial regular que vinha da capital para, pousa aqui e ali, chegar até Uruguaiana e São Borja. Mas os "aparelhos" passavam alto, isso amortecendo em muito o som das aves metálicas. Assim, muitas vezes a gurizada não conseguia visualizar a condução aérea dos felizardos ricaços que faziam suas viagens em tão maravilhosas máquinas.

         Naquela época voar de avião para nós não passava de um sonho distante, irrealizável. Isto só estava ao alcance de fazendeiros, doutores, advogados, engenheiros, comerciantes fortes, políticos de destaque e seus assessores nem tão destacados,  mas mui astutos ...

         Só que neste  dia nublado, estranhamente, o ronco era muito mais forte e, sem mais nem menos, nos surge aquele monstro alado quase tocando no topo das coxilhas, vindo em nossa direção.

         Uns piás gritaram:

         - Vamos correr que vai cair e pode ser em cima de nós.

         Alguém da turma foi mais sensato:

         - É melhor a gente ficar olhando e só correr quando se tiver certeza, pelo rumo que tomar,  do lugar onde vai bater no chão.

         Ficamos ali, paralisados de terror e maravilhados pelo privilégio de ver um avião de perto, duas enormes emoções.

         Acabamos um pouco decepcionados quando tivemos a certeza de que, se caísse, não iria ser tão perto de nós, pelo novo rumo que o piloto tomara.

         E lá se foram, avião, piloto, co-piloto, aeromoça, passageiros endinheirados, políticos espertos e os infalíveis "piolhos-de-rico", raça que, como a das baratas, sempre existiu e nunca deixará de existir, no rumo do campo de aviação de Santiago.

         Claro que  nenhuma criança queria um morticínio, mas, confesso, todos nós ficamos chateados por que não seria daquela vez que iríamos conhecer um avião de perto.

         Não duvido que algum, alguns ou todos, inclusive o escrevinhador, houvessem torcido pelo pouso forçado num campo ali perto. Afinal, já houvera casos de avião cair em campos e lavouras sem que ninguém houvesse morrido.

         "O que custava fazer um pouso de emergência ali na Palma e encher de alegria e felicidade o coração daquela gurizada? Não houvera uns  anos antes o pouso dum avião pequeno, ali na estrada da Vila Mata, com os dois homens que estavam neles saindo sem nenhum arranhão?"

         E aquela foi a sensação do dia, da semana, talvez do mês.

         E mais: não duvido de que aquela passagem rasante, abaixo da camada baixa, que lambia os cerros da Mata e  Taquarixim seja a culpada de este retratista/escrevinhador haver feito enormes sacrifícios para cursar o PP, pelear outro tanto para comprar seu primeiro ultraleve e continuar voando até os presentes sessenta e oito invernos.

         O DC-3 da saudosa Varig felizmente não caiu, deve ter chegado ao seu destino ou, na pior das hipóteses, alternado para algum pouso seguro.

         Mas nem a Varig, nem o piloto, nem a aeromoça tiveram ideia do quanto marcaram os corações daquela humildes crianças, filhos de meros agricultores agregados, simples vendedores de livros, sendo que um dos piás era órfão de pai, todos jamais acreditando em realizar o sonho de um dia sair do chão.

         Certas coisas vêm no 9gene e não duvido que lá numa d⁷as ínfimas moléculas de DNA tenha vindo a ordem: este aí tem que voar um dia.

         Mas também não duvido que aquele DC-3 passando baixo pela Palma, lambendo coxilhas, seja o culpado por haver um pobre fotógrafo empenhado até a alma para conquistar seu brevê e continuar suando sangue para ter suas próprias maquininhas voadoreas, simples, elementares, mas voantes.

         Claro que muitos invejam aqueles que têm o privilégio de voar, que quase a maioria dos humanos sonha em ter asas. Mas raros são os capazes de qualquer sacrifício para realizar o sonho de dar uma rasteira na lei da gravidade.

         Como diz aquele ditado: só quem voa sabe porque os passarinhos cantam.

         Este desejo ancestral, esta busca primeva está em todos, e felizes os que conseguem realizá-la.

         Meus profundos e sinceros agradecimentos a S. Pedro, que forçou aquele comandante, nos tempos heróicos da aviação a voar ciscando, que adivinhou onde estava aquele piazedo de campanha para, qual um piloto agrícola, fazer um tiro perfeito lançando, não azevém, mas a semente da aviação.

         Pelo menos uma  germinou.

         Palma, junho 2021.



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Vídeo do DC restaurado voando de Floripa a POA. 

https://www.youtube.com/watch?v=JRwi6bILrEc