domingo, 31 de janeiro de 2021

Enfrentando o Ventão

   Enfrentando o Ventão


         Meus cinco leitores já devem andar de saco cheio com  minhas constantes afirmações de que já estou no hangar até antes do Sol nascer, em dia de vôo.
          Mas não é mentira.
          Como sempre faço vôos longos, quanto mais cedo sair, menos turbulências, ventões, etc.
          Nada como voar de manhã, no fresquinho, sem vento, pressão do ar  alta, atmosfera estável. Os comandos respondem exatamente como esperamos.                                           
         É uma delícia voar assim. Só não saio mais cedo, pois também dependo da luz, para minhas fotos.
         Pois bem, em mais uma madrugadinha lá se ia  o Lambe-Lambe rumo ao aeroporto de Caçapava do Sul. Deveria o sujeitinho fazer o traslado do 15 BIS, daquela simpática cidade e acolhedor mas fechado aeroclube, para São Gabriel, coisa duns quarenta minutos de vôo em circunstâncias normais.
         Esperava chegar na pista sem nenhum vento, pois ainda era escuro e a previsão era de tempo bom, com possibilidades de alterações meteorológicas  apenas no dia seguinte.
         Assim, fui checar o valente companheiro para esta jornada que se afigurava tranquila e rápida.
         Para quem não sabe, Caçapava do Sul localiza-se no alto dum platô, com quatro cabeceiras, sendo que as pistas formam um “L”.
          Uma delas começa, a Leste bem num dos lados do platô, o de maior altura e termina num descidão dos graúdos. Para se ter idéia da real dimensão do desnível, basta dizer que o aeroporto está a 1350 pés e lá embaixo a altitude não chega a 300 pés.
          Fica fácil imaginar o tamanho das turbulências orográficas num  lugar assim. A Pista Sul Norte começa numa descida forte e termina já quase na cidade. Resumindo, em dia de vento, o melhor para se voar dali, é de carro.
         Mas eu estava lá de manhãzinha, sem vento, portanto, tranquilo que nem água de poço.
         De repente um fantasma dá um sacolejão numa porta do hangar. Acho  até que seria melhor,  fosse, de fato, o dito ser de outro mundo.
         Volto aos preparativos do vôo quando o fantasma insiste. Saio para a rua e já o bicho andava aprontando em todos os lugares. Os eucaliptos estavam agitados, uma leve poeira subia da pista de terra.
         “Bem, lá se foi o meu traslado.”
         Mesmo assim prossegui  o preparo da aeronave, com a desculpa de que  mais tarde ou no dia seguinte, quando o vento acalmasse, já estaria tudo pronto.
         E muitos de vocês sabem o que é a ansiedade por voar.
         A gente planeja um vôo. Se no primeiro dia não der, aceitamos o fato sem maiores traumas. Se no segundo também não for possível voar, já ficamos cabreiros. No terceiro, bem, no terceiro, somos capazes de achar que um furacão é apenas uma brisa suave.
         Mas eu não ia cair nessa, prometi-me. “Vou esperar” – pensei.
         Fui à cidade, tomei um café, sempre de olho na agitação das árvores.
E, isso mesmo, elas estavam se acalmando. O vento diminuía, especialmente para permitir meu vôo.
         Voltei correndo para o aeroporto, abri o hangar às pressas e me fui para a decolagem.
         A cabeceira mais favorável era a Leste-Oeste (mais ou menos), sendo que, no final, havia, à direita, a pista Sul-Norte.
         Havia mil metros de pista à minha disposição. Dava para fazer umas quantas decolagens, se preciso. Embora o vento fosse de través, preferi tal cabeceira, pois não iria direto para cima da cidade com as turbulências de edificações, árvores, etc.
         Dei manete a fundo e o Fusquinha 1600 correspondeu. Ganhei velocidade normalmente, baixei levemente a asa direita, de onde vinha o vento e fui compensando o través. Quando, porém, perdi contato com o solo, a guinada à direita foi violenta. O 15 BIS queria voar de lado de qualquer jeito.
         Aí dei-me conta de que o Vento Norte não estava para brinquedo. Como tenho aquilo  e tenho medo, tomei uma rápida e acertada decisão. Já que o avião derivava tanto para a direita, era só deixar a natureza agir, alinhar com a pista  Sul Norte e pousar feito um helicóptero, pois a velocidade do vento era medonha. Pois não é que deu certo?
         De pernas bambas e molhado de suor,  fui para o hangar e fiquei bem quietinho.
         “Todo o vento Norte sempre enfraquece ao entardecer. Dificilmente continua forte ou aumenta à tardinha. Vou esperar.”
         Voltei ao centro, agora para o almoço.
         Um olho no prato, outro na agitação das árvores que via pela janela do restaurante.
         Estavam quase paradas, de novo.
         “Vento pirado, esse. Aumenta e diminui tão rápido.”
         Aeroporto de novo. A ansiedade por voar, cada vez maior. As árvores balançando me pareciam estar na mesma agitação de tantas outras vezes em que voara sem problemas. Era voar o quanto antes, a fim de evitar que a natureza mudasse de idéia.
         Dessa vez encarei a pista Sul-Norte. O ventão, se existisse, bateria direto na cara e não haveria alternativa, para pouso em pista perpendicular.
         Saí do chão com uma facilidade, como se o motor fusquinha tivesse uns 200 hps... Ganhei altitude rapidamente e achei que tudo estava dentro da normalidade. Pouca turbulência. O vento, de fato, amainara.
         “É para já que estou em São Gabriel” – matutei.
         Mas antes de curvar à esquerda, rumo à terra dos Marechais, há que se avaliar muito bem a situação, pois havia um baita vale a ser transposto. E se houvesse vento no meio dele?
         Já estava estranhando a demora em chegar, a partir do aeroclube ao Posto da Polícia Rodoviária, coisa de uns 8, 9 km, no máximo, e quase quinze minutos de vôo.
         “Devo ter-me enganado ao disparar o cronômetro”.
          Mesmo assim achei  melhor averiguar os acontecimentos e comparar a velocidade indicada com o GPS. Bem na hora em que olho pro GPS, este indicava a extraordinária velocidade solo de 40 km/h e a indicada era de 111 km/h. Ou seja, estava com um ventão de proa de 70 km/h.
         O que não tem solução, solucionado está – diz o ditado.
         Com um ventão daqueles, oferecer a asa para o vento num aviãozinho lento, leve, e de pouco motor,  numa área de morros, era fazer a alegria das funerárias e a tristeza da seguradora. O jeito era seguir reto, rumo a Santa Maria, esquecer S. Gabriel e, com sorte, pousar quebrando o aparelho em alguma lavoura, lá por S. Sepé, onde havia muito terreno plano.
         Mas a conformação do terreno conspirava contra mim. Estava bem no alto duma cordilheira e, desviar-me para um dos lados poderia significar a entrada no meio dum rotor dos ferozes ...
         E o surpreendente da coisa é que um ventão com aquela velocidade, sobre um terreno acidentado quase não gerava turbulência. Era quase como voar sobre a água.
           Claro que a essas alturas eu já estava lá no décimo andar, mas não passara dos três mil pés. Desisti de continuar subindo porque uma vez, quando tentara fugir dum ventão Leste, acabei entrando numa zona de ventos cruzados, coisa de arrepiar os cabelos do nariz ... Naquela ocasião voltei imediatamente à doce e previsível turbulência orográfica.
             Neste caso, a velocidade do vento era aterradora, mas a turbulência quase nula. O jeito era ir remando, remando, a quarenta, cinquenta, no máximo sessenta quilômetros. Os tanques estavam cheios, dava para sair dos morros e chegar à zona das lavouras de arroz. Num aperto, até a Base Aérea de Santa Maria poderia servir para um pouso de emergência. Comandos na mão direita, carteiras de piloto na esquerda ...
         Quando estava quase fora da zona acidentada, arrisquei uma curva derrapada à esquerda, preparado para o imediato retorno à proa antiga, caso o avião sacudisse, derivasse muito. Nada de grave aconteceu. Atento, esperando que tudo voltasse ao pavor antigo, recorri ao meu EIC (Equipamento Indicador de Cagaço). Trata-se duma prosaica garrafinha PET de 600 ml, com água. Tem uma precisão que vocês não imaginam: se num dia frio, num vôo relativamente curto pouso com ela vazia, podem estar certos – algo muito sério aconteceu... Meia garrafa, vôo estressante. Um quarto de garrafa, apenas uma sedezinha ou alguma turbulência. Garrafa cheia, piloto feliz – raro vôo sem susto.
         E explico porque são raros os vôos em que não levo algum sustinho. Acontece que vôo numa pandorguinha, com confiável, porém fraco motor VW1600, durante longas horas (quase sempre três – sem escala), sozinho, sem apoio e em regiões, muitas vezes desconhecidas. Assim, dificilmente não pego uma viração de vento ou outro imprevisto.
         Tomei minha água e como não aparecessem grandes turbulências, fui indo, fui indo, sempre procurando as cristas dos morros, das coxilhas, nunca deixando que o vento que vinha da direita me pegasse à esquerda das elevações.
         Quando cheguei a Vila Nova, onde há um acentuado desnível, perdi uns 15minutos de vôo, seguindo pela crista do planalto até um ponto onde julguei que o rotor não seria tão violento, pois o desnível era mais suave. Mesmo assim, entrei na descida com a garganta seca e a camisa molhada.
         Felizmente não precisei sujar a cueca...
         O pior passara. Estava conseguindo uma velocidade solo de até 80 km. Isto é,  o vento de través me roubava 30 km. Isto indicava que o Nortão não dava folga pro Lambe-Lambe.
         O indicador de cagaço aumentando. Terminara a garrafa dágua e começara uma de coca-cola ...
         A preocupação agora era o pouso, já tido como provável, em S.Gabriel. Pousar com um traiçoeiro Vento Norte de até 70 km, era de amargar ...
         Mas, como falei, o que não tem solução, solucionado está. Sei lá como ainda consegui fazer umas fotos, com toda aquela tensão.
         À medida em que me aproximava do pouso, GPS e velocímetro começaram a se entender melhor.
         Chegando no aeroporto, a velocidade do vento era de 10 km. Para quem enfrentara rajadas de 70, calmaria pura.
         Pousei sem problemas, mais uma vez jurando para mim mesmo que jamais deixaria a ansiedade me levar a um vôo tão perigoso.
         Cumprir tal promessa já é outra história ...
         E, com licença, que só de escrever sobre a experiência me deu uma sede ...
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KITFOX À VENDA
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sábado, 23 de janeiro de 2021

Primeiro Grande Voo Comercial no Brasil



   Era um gigante na época. Trinta toneladas voando a 175 km/h sobre o Atlântico Sul. Seis motores com doze hélices ...
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Esclarecimentos
   Pretendo retomar o Blog do Barbosa "Lambe-Lambe", nos moldes iniciais. Postagens todos os finais de semana, se possível no sábado, para que o pessoal possa acessar com calma. 
   Sempre terá assuntos de aviação, preferencialmente a aviação leve e geral.
   Vamos fazer com que o Blog volte a ser o ponto de comunicação entre os pilotos e apreciadores da aviação aqui do Sul do Brasil e, por que não, do resto do país. 
   Anúncios de venda, trocas, informações sobre onde conseguir peças e materiais, tudo será publicado sem mexer na guaiaca da gauchada. Pelo menos inicialmente.
   Histórias, experiências, também serão postadas. Mande para o blog aquele seu baita cagaço, a mancada que deu, os erros cometidos, para servirem de alerta aos demais manicacas. 
   Sempre vamos levar a coisa mais para o lado bem-humorado, mas nunca esquecendo de que aviação é coisa séria e sempre lida com vidas humanas. 
   As contribuições serão recebidas pelo e-mail vilsombarbosa@hotmail.com ou pelo whatsapp (55)99997-6269.
   Então, "temo" combinados!
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         Vocação para Tatu

 

         O Aero Boero até é um avião razoável, desde que seu motor tenha, no mínimo,  150 hp. Aquela enjambrina que fizeram num acordo comercial com a Argentina, com troca de não lembro o que pelos ditos aviõezinhos foi muito do mal-feita. Em vez dos originais 150 hp, os "aparelhos" vieram com apenas 115 cavalos. E meio magricelas...

         Com tanques cheios, dois pilotos, o avião fica uma pata choca. Até sobe, mas devagar, quase parando.

         O blogueiro, há muito tempo alugava tecos para fazer "retratos" panorâmicos. Voava CAP 4, J3, Embraer 140, Tupi, esses equipamentos.

         E, às vezes, por necessidade, era obrigado, a contragosto, a voar nos tais Aero Boero.

         Andando por Santa Catarina e não vou dizer exatamente onde, para não comprometer o Aeroclube, tive que, esperneando, entrar num AB para fazer uns panorâmicos.

         Era um dia pré-frontal, quente, com pressão atmosférica baixa, tudo ajudando ...

         Mas o "Lambe-Lambe" veve de retratos e o jeito era encarar.

         Fomos pra cabeceira, o comandante deu motor e o aviãozinho começou a comer pista, comer pista, comer pista ... Até que resolvesse sair do chão demorou uma eternidade.

         O pior é que saímos e aí começou a briga com o altímetro: pra conseguir 150 pés por minutos de subida, só com muita reza forte. Mas fomos peleando, peleando, até chegarmos nos mil pés.

         Aí aproamos o local das tais fotos e fomos sem grandes sustos, voando nivelados, mas com o motor sem muita margem para enfrentar eventuais imprevistos.

         Como o blogueiro já tinha uma certa experiência, para evitar maiores percalços e cagaços, não se arriscou a voar mais baixo. Quem tem, tem medo.

         E a região inicial era num vale.

         Pois as fotos daquele vale foram feitas e tínhamos  que ir para um outro vale, na continuidade dos  clics documentatórios.

         Só que a natureza inventou de sempre colocar  uma cordilheira entre dois vales ...

         Comuniquei o guri que já era hora de irmos pro outro vale, além da tal serra, presente da mãe-natureza ...

         Ele fez sinal de entendido e tomou a proa da cidade seguinte a ser sobrevoada, lá do outro lado da morralhada.

         E botou a manete no esbarro rumo ao primeiro cerro, esperando o milagre da subida do Aero Boero.

         Só que o vento era de cauda e, se com vento de proa, mal subia a 150 pés, agora, praticamente não mexia o altímetro.

         E o morro vindo ligeirito em nossa direção, pois com vento no traseiro o AB ficou veloz ...

         O "Lambe-Lambe" atento, vendo o que o guri ia fazer.

         Sei lá o que o rapaz tinha na cabeça, acho que vento ou merda, pois já estva chegando ao ponto em que não se poderia fazer a curva sem risco de bater no morro, estolar, etc. e ele aproado bem com a metade da altura da montanha.

         Pulei nos comandos e inicieia a curva de 180 graus.

         - O que stásch fazendo? - falou com aquele sotaque de catarina.

         - Evitando abrir túnel no morro!

         E acrescentei:

         - Com o avião "subindo" deste jeito, nem com a ajuda de todos os santos de todas as crenças nós vamos ter altura maior do que o topo.  Vamos aproar o vento, subir até ficar acima da crista da serra e, aí, sim, passar para o outro vale.

         A manobra deu certo, tanto que estou contando, mas se fosse um fotógrafo que não tivesse experiência como piloto, com certeza aquele teria sido o último voo da dupla.

         Fica a dica: nunca tente ultrapassar uma serrania sem antes ter altitude superior a ela e com uma certa margem. Isso de achar que a razão de subida vai ser suficiente é um convite ao carro fúnebre.

         E se vier uma descendente sem prévio aviso? E se mudar o vento? Aí, em vez do lift, teremos um rotor jogando o avião para baixo.

         Não é por nada que num determinado ano houve mais mortes de pilotos e fotógrafos do que pilotos agrícolas.

         Na minha opinião há causas bem notórias: quase sempre o piloto de aviões usados para fotos é recém-iniciado no voo comercial, às vezes apenas PP, em ambos os casos com menos de 100 horas de voo, o que não é nada. Também pode ser um instrutor com as suas 150 horas, mas voando muito em região conhecida e com altitude maior. Deve contribuir, ainda, o fato de alguns pilotos irem trabalhar em locais totalmente estranhos, sem saber como se comporta a meteorologia, o tipo de relevo, ventos, alternativas, etc.

         Por via das dúvidas: se ainda não está acima e bem acima do topo duma cordilheira, não tente sobrevoá-la. A tentativa pode ser sua última ação "nesta terra que o Senhor teu Deus te dá."

          

 

domingo, 17 de janeiro de 2021

Pane de Profundor - Homenagem a Fernando Velho Costa

 

            Pilotar  é Diferente de Palpitar        

 

         Quem não conhece o famoso piloto de mesa ou de bar?

 

         Todo o aeroclube, toda a pista de ultraleves tem a indefectível figura.

 

         O sujeito pilota uma barbaridade, faz o que ninguém consegue, entende de tudo, enfim, um ás no total sentido do termo ...

 

         Toda a vez que alguém passa por um sufoco, uma pane, um pouso de emergência, lá vem ele com a infalível frase:

 

         - Por que tu não fizeste como eu, uma vez quando o motor rateou ...

 

         O eu é o único pronome que conhece. Eu faço, aconteço, etc. etal.

 

         Mas, uma coisa é pilotar sentado à frente duma gelada, outra, bem diferente é enfrentar o pepino em tempo e espaço real. Não se trata de mera simulação: o pau, lá na frente está parado, a pista mais próxima fica a milhares de quilômetros e o piloto tem que levar o "aparelho" a um "choque com o planeta Terra", como diria o Chico Ledur, o mais suave possível. Se der, com o aviãozinho plenamente utilizável ou, ao menos, com o seu condutor saindo com todos o ossos inteiros.

 

         É muito fácil pousar sem motor, sem algum dos comandos, enquanto a cerveja dá mais perícia e reflexos ao entendido. O difícil é estar lá em cima com árvores, morros e o gado, embaixo, na maior tranqüilidade e indiferença com o problema ocorrido com a refrigeração do aviãozinho, pois, de repente o piloto começou a pingar suor uma barbaridade. E vacas lá, no único trechinho mais ou menos pousável.

 

         Pois vou relembrar aqui a pane que o Fernando Velho Costa enfrentou com muita competência. A pior delas: o comando do profundor desconectou-se.

 

         Imaginem vocês: a gente lá em cima, puxa o manche e sente aquela leveza apavorante. Puxa mais ainda, nada.

 

         Empurra: leve, leve. Pica até o fundo, mais leve...

 

         O pavor injeta litros de adrenalina no sangue. O coração dispara. A garganta seca como se por dias não se houvesse  bebido uma única gota dágua.

 

         O pior dos pesadelos trás a agonia da morte não para o sono, mas para a realidade e o piloto sente martelando no cérebro a expressão tantas vezes ouvida: "com pane de profundor, só resta rezar".

 

         Crente, descrente, ateu, à toa, agnóstico, pernóstico, todos rezam nesta hora.

         Mas somente rezar talvez não seja suficiente. Quem sabe,  totalmente ineficaz.

 

         Algo deve ser feito.

 

         É onde se faz a diferença entre pilotos-homens e pilotos-meninos.

 

         Vendo a morte com o gadanho erguido, lá embaixo, só esperando a chance, um homem reage, um menino grita pela mãe, entrega a rapadura.

 

         Para completar, o Costa levava um passageiro. Para deixar a coisa mais tensa ainda, criança de seus oito, nove anos.

 

         O Fernando fez a diferença entre homens e guris.

 

         Tratou de não fazer curvas fortes e ir testando a reação do seu ML400 (naquele tempo ele pilotava ultraleve, no verdadeiro sentido da palavra - não o RV-9, RV-7, sei lá,  que é um baita avião, isto sim) com o uso do compensador e uma aceleradinha ou reduzidinha de manete.

 

         O pepino, de tão graúdo era uma melancia e das grandes ...

 

         Suando até pelas unhas, tenso que nem corda de violão, tratava de manter o ML no ar. E estava conseguindo voar relativamente nivelado.

 

         Voar em linha reta horizontal é a primeira aula prática de nossos cursos. O abc

da pilotagem em situação normal ele conseguia executar sem o mais importante de todos os comandos.

 

         Isso já era uma senhora façanha.

 

         Mas todo o avião que está em vôo tem que pousar. Para pousar, tem que perder altura. Para perder altura, há que se picar o manche, quando ele funciona.

 

         E o Costa pensando: "Se, na hora de picar o compensador, o avião entrar numa atitude de mergulho e não sair mais dela?"

 

         O que não tem solução, solucionado está.

 

         Se não tentasse, uma hora a gasolina acabaria e, aí, sim, a vaca se iria para o brejo. Sem profundor e sem motor ...

 

         Tomou a decisão certa, começar a descida e torcer para que desse certo.

 

         Com todo o cuidado do mundo picou levemente o compensador.

 

         O ultraleve respondeu suavemente e começou a descer.

 

         Agora vinha o momento do tudo ou nada: hora de neutralizar. O que aconteceria?

 

         O aviãozinho sabia que duas vidas deviam ser preservadas, dentro do possível.

 

         Começou a erguer o nariz suavemente.

 

         Era como se o Sol nascesse depois de uma noite de tormenta e sem Lua.

 

         Havia esperança. Não entrariam de nariz, a noventa graus.

 

         Qual seria o ângulo da placada? A que altura estolariam?

 

         Estas perguntas repetiam-se numa rapidez vertiginosa.

 

         Um avião, duas vidas, um simples pino solto. O fim de tudo estava por um fio de cabelo. E pelo sangue-frio do piloto. Corrigindo, sangue ainda não fervente, pois numa situação desta ninguém pode mantê-lo. Apenas não perde o controle, ainda que os cabelos ergam o capacete de pavor.

 

         A pista, na época era menor, creio que 360 m, iniciando por aterro e terminando entre barrancos,  com linha de alta tensão na cabeceira. Era pousar ou pousar. Arremetida fora de cogitação.

 

         Já exigia perícia em circunstâncias normais. Sem profundor, perícia e sorte.

 

         Enquanto deu o Fernando testou o compensador, as reações do ultraleve.

 

         Também testou a reação quando diminuía o motor. Foi pegando a mão da sincronia entre compensador e manete, isto no ar, em vôo quase nivelado.

 

         Na reta final,  a descida definitiva, com maior ângulo na rampa, o que aconteceria? Nenhum instrutor havia falado sobre isso. Apenas lembrava-se de que "pane de profundor era lucro pras funerárias".

 

         Encarar a descida para a pista com uma frase destas martelando as idéias não deve ser a melhor coisa do mundo.

 

         A Aldeia dos Anjos (nome do Sítio de Vôo) aproximava-se.

 

         Agora é que o homem mostraria porque não era menino.

 

         Reduziu o motor, picou suavemente o compensador e manteve o alinhamento com o eixo da pista.

 

         Como o Fernando é médico, preveniu o guri que o acompanhava para que, chegando bem perto da pista, se encolhesse, evitando que o impacto fosse direto sobre a coluna.

 

         Nunca aqueles seiscentos metros de aproximação demoraram tanto a passar.

 

         Nunca uma cabeceira passou por baixo tão rapidamente.

 

         Era agora: arredondar ou ir chão a dentro.

 

         Cabrou o compensador e reduziu o motor.

 

         Só que os ML, pela posição do motor - atrás e ao alto - quando há redução da manete, tendem a erguer o nariz e foi o que aconteceu.

 

         O ultraleve ganhou novamente altura e a seguir estolou, placando com extrema violência.

 

         O passageiro, criança, mais leve e, seguindo as instruções do comandante, saiu praticamente ileso.

 

         O ML ficou quase que destruído.

 

        Com o Fernando Costa, infelizmente, a coisa complicou. Fraturou um vértebra. Isto porque, no instinto de piloto, bateu no solo com as pernas esticadas, a mão no manche, indo todo o impacto para a coluna.

 

         Mas, sua coragem, perícia e atitude foram recompensadas. Após cirurgia e tratamento, recuperou-se, voltando a caminhar normalmente e a pilotar, sendo que agora anda faceiro no seu RV.

 

         No meu entender, acho que  pouquíssimos de nós conseguiriam levar um ultraleve sem comando de profundor a pouso em que um saísse ileso e outro com lesões recuperáveis. O fato de destruir o aviãozinho, para mim é  insignificante.

 

         Pois é, mas não faltaram "pilotos", "mui amigos", que começaram a dizer que ele não deveria ter reduzido tanto o motor, que poderia ter cabrado menos o compensador, ter feito uma rampa mais suave. Essas coisas que os ases de mesa sabem falar, como se aviação fosse que nem futebol e existisse pilotagem de botão ...

 

         Segundo consta houve até um que quis levar a coisa ao extremo e tentou um pouso sem comando de profundor. Mas ele fez tudo na maior tranqüilidade, sabendo que, se a coisa encrespasse, o profundor estava ali, disponível, era só usar.

 

                   Assim, sem tensão, a coisa fica muito mais fácil. E o tal conseguiu pousar.

        

         Pena que pilonou ...

 

         Ainda bem que saiu ileso.

 

         Mas que nunca mais tentou o tal tipo de pouso é verdade e dou fé.

 

        

 

 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Voo Livre - Parte III

 


 

         Como já falei,  a meteórica carreira de piloto de asa foi curtíssima, mas faltam "os finalmentes".

         Depois dos espinhos na bunda e da arborização veio o encerramento do curso, carreira, etc., com chave de ouro...

         Andava o escrevinhador-blogueiro tratando de seu trabalho, entregando fotos, recebendo uns trocos, essas coisas, quando me encontro com o carro do instrutor, duas asas no teto, quatro alunos dentro, vindo em sentido contrário.

         Dei um jeito de fazê-los parar e perguntei para onde iam.

         - Pro Morro da Jativoca,  em Joinville.

         E caíram na armadilha de elogiar o tal Morro. "Que era ideal para voos iniciais, pois era um morro pelado, isto é só tinha pasto na encosta. Que a inclinação era ideal, pois o ângulo de descida era mais ou menos igual ao da rampa do morro. Que, no caso dum imprevisto, dificilmente o novato se machucaria e, finalmente, que permitia voo com vento de qualquer direção porque era uma elevação arredondada e regular."

         Pronto: "Podem ir se apertando que eu vou junto".

         E lá se foi a Elba, se não me engano, atulhada de voadores, experientes e nem tanto, equipamentos no porta-malas, duas asas no teto, sofrendo com todo aquele peso.

         Os cem quilômetros ou pouco mais foram vencidos sem problemas e  lá pelas três da tarde estávamos nós no alto do Jativoca, disputando seu uso com o Exército Brasileiro, que estava, justo naquele dia, fazendo alguns exercícios com a milicada. Os comandantes da operação não colocaram empecilhos e começaram os voos.

         O vento, fraco das pernas, de novo. Parecia até perseguição, pois todos sabemos que  litoral sem vento é coisa difícil de ocorrer.

         Só que fazer duzentos quilômetros, para não voar é coisa que difícilmente a rapaziada aceitaria.

         Mesmo em condições adversas, todos queriam tirar sua casquinha no Morro da Jativoca.

         Como aqui o trajeto entre a decolagem e pouso era menor e a rampa mais suave, os voos se sucediam mais rapidamente e logo chegou minha vez.

         O primeiro voo transcorreu sem incidentes mais graves. Apenas aquela sensação de "vai dar cacaca agora" , pois com falta do "lift" era um rasante de não caber uma formiga entre o voador e a grama ...

         Mas nesse, deu tudo certo.

         Antes de mim um outro aluno andou perdendo sustentação e o voo ficou pela metade, mas não se machucou, dadas as características de rampa suave e sem maiores obstáculos.

         A asa também saiu ilesa.

         Outros voaram, todos tirando fininho do solo.

         O certo, mesmo, era suspender o treinamento, pôr a viola no saco e voltar para Itajaí. Mas, não sei lá porque o professor cedeu aos apelos dos alunos.

         Não devia.

         Eis que, de novo estava o "Lambe-Lambe" pronto para nova corrida, decolagem, rasante morro abaixo e, com sorte, outro pouso lá embaixo.

         Fui-me. Num rasante bárbaro, que nem um agrícola Ipanema, sobrecarregado em calorão de trinta graus.

         Pois é, falei que o Morro da Jativoca era apreciadíssimo pelos praticantes do voo livre.

         Mais apreciado ainda era por uma colônia de cupins, que não entendia de voos humanos pendurados naquelas coisas triangulares e estranhas. E não imaginava que um novato quisesse fazer testes de resistência de materiais,  usando, justamente seu condomínio.

         Não deu outra: no raso, consegui dar uma cabradinha e livrar minha cabeça, corpo e membro do arranha-céu dos insetos.

         Mas não deu para livrar o trapézio do choque.

         Para os gaúchos campeiros, foi como se tivessem pealado a asa pelas patas da frente.

         Faz tanto tempo que não lembro direito, mas acho que não completei o "looping" invertido.

         Quando me dei por conta estava com a proa da asa cravada na grama, ambos ilesos.

         Tratei de me levantar e subir a encosta para entregar o equipamento a outro maluco que quisesse encarar aquela condição de pouco vento.

         Notei que a asa estava meio molenga, mas pensei que fosse coisa de apenas algum pequeno ajuste.

         Chegando na rampa, fomos revisá-la.

         Que ilesa, coisa nenhuma: o choque quebrara a quilha e, sem um bom mecânico aeronáutico, por um tempo aquela asa não voaria mais.

         A outra asa era a queridinha do instrutor, equipamento caríssimo e, claro, naquelas condições nem ele quis saber de voar.

         Restava, então, procurar um boteco e beber para esquecer.

         E eles até já sabiam onde havia um que tinha cerveja bem gelada a preço honesto.

         Lá nos fomos para comemorar a "formatura" nada honrosa desse manicaca aqui, que encerrou sua carreira de piloto de asa delta de forma melancólica, bebendo em boteco de periferia ...

         Não sei por que, dali para a frente, sempre que eu me escalava para um voo, havia uma desculpa na ponta da língua ...

         Naquela sequência, arborizando e quebrando asa, ia era acabar quebrando  as ideias nalguma pedra ou encosta.

         "Melhor não arriscar" - pensava o instrutor.

         E ali encerrou-se minha experiência com o voo livre!

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Resposta da Sessão Nostalgia da Postagem Anterior


    As fotos dos CAP 10 em acrobacia, foram feitas pelo "Lambe-Lambe na EXPOAER que ocorreu no Aeroclube do RGS, em 22 de abril de 1990.

        Os pilotos eram um casal de franceses que faleceu em acidente aéreo alguns anos depois.

        O Paulistinha pousado na praia era de Joinville e os "motoristas" eram o "Lambe-Lambe", de barba e o Irineu, que era instrutor naquele aeroclube, mas que já voara muito no Aeroclube de São Leopoldo.

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Sessão Nostalgia Pessoal

   Quem seria o piloto especializado em quebrar Kitfox? Esse foi o primeiro, em 31 de dezembro de 1999.



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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Voo Livre - Parte II

 

               

 

         Pois como lhes falei minha carreira como piloto de asa delta foi meteórica. Literalmente: sempre que vejo um deles, ele está caindo ...

         Após o pouso com o sentante no espinheiro, não me dei por vencido e insisti em levar adiante o Curso de Voo Livre a troco de fotos. Meu sonho era decolar da Pedra da Praia das Laranjeiras, ali, colada na ponta Sul do Balneário Camboriú.

         Vou abrir um parêntese sobre as categorias de pilotos: sempre existem dois tipos - o JACA e o VACA. Sempre prefira voar com um piloto JACA  - Já Caiu. Se caiu, continua vivo e pilotando, das duas, uma: ou é extremamente perito ou tem uma bruta sorte. Com qualquer dessas qualidades continua sendo preferível ao VACA - Vai Cair. Com o último, nunca se sabe o que pode acontecer numa pane.

         No voo livre o caso é parecido - temos o que já arborizou e o que vai se empoleirar numa árvore. Não tem como fugir disso ...

         Sabedor que se estava esgotando o meu crédito como aluno, pois as fotos não cobriam milhares de horas, tratei de ir queimando etapas, antes do final do curso, incluindo a tal arborização. Queria sair realmente capacitado ...

         E lá estávamos nós, instrutor e alunos, no alto do morro da Praia Brava, para prosseguimento dos voos.

         Neste dia a situação do vento era oposta e não passava duma brisa, meio insuficiente para voos de novatos.

         Repetem-se as manobras de decolagem, voo curtíssimo, longa e penosa subida do morro carregando a asa nas costas para entregá-la ao aluno seguinte.

         O fotógrafo-aluno faceiro que nem mosca em tampa de xarope, esperando impaciente a vez de repetir a maravilhosa experiência de estar no ar, sozinho, curtindo o zumbido do ar nos cabelos, a beleza da praia e o prazer indescritível de ser como os pássaros.

         Chegou a minha decolagem e o vento que da outra vez quase me manda proutro mundo por estar forte, agora era "muy flaquito" como diriam os argentinos que infestavam e ainda infestam a região no veraneio ...

         O instrutor largou o "Agora". Lá me mandei eu esperando que o "lift" me erguesse e,   do alto, agora "experiente", não permitiria a cabrada excessiva com o risco de estol. Assim  já sairia curtindo o voo desde o seu início.

         Mas cadê o vento e o correspondente "lift"? Em vez de subir, ao terminar a rampinha de decolagem, continuei num voo rasante, tipo marreca piadeira. Tirava fininho duma pedra aqui, dum arbusto ali, desviava doutro mais adiante e a situação começou a se mostrar complicada. Tudo indicava que o pouso nos espinheiros ou o perseguido pouso normal lá na praia não passavam de sonhos de uma noite de verão ...

         O negócio era ir tentando driblar a vegetação e, principalmente as pedras, descida abaixo.

         Tudo ia nos conformes até que o novel voador se atrapalha e perde o controle da asa. Esta derivou para a direita onde me aguardavam uns butiazeiros guarnecidos por uma cerca de arame.

         E farpado!

         Tentei cabrar um pouquinho, tentando passar por cima da cerca e ver se me livrava do abraço aos arames. Preferia catar coquinhos, dando um estampaço no tronco dalgum butiazeiro, mas a manobra não foi muito feliz e já antes dos coquinhos, estava a asa devidamente enroscada na cerca.

         Lá estava o fotógrafo ileso, mas encagaçado de novo, com o "pequeno" nariz a milímetros do arame farpado e enferrujado, combinação perfeita pruma infecção ou, pior, tétano, se não fizesse a vacina de imediato.

         O que me salvou de um baita estrago no semblante de galã de porta de açougue foi os cabos que reforçam e fixam o trapézio à asa, os quais formam um tipo de "Santo Antônio" protetor. As farpas não chegaram a estragar minha estampa justamente porque correram pelos cabos e não me atingiram, pelo que milhares de mulheres agradecem até hoje ...

         Fui até fotografado no exato momento da arborização ou cercarização, ritual indispensável a todo praticante de voo livre, mas, perdi uma tarde inteira escarafunchando minhas fotos antigas e não consegui achar os tais "retratos".

         Mas quer arborizei, isso arborizei! E tenho como prova os fios de arame e os butiazeiros que nunca me deixaram mentir.

         Tem outra aprontação com asa delta, mas fica proutro dia.

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Sessão Nostalgia

   Alguém sabe quem são os dois pilotos? Onde foi esta apresentação? Quando?



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Nostalgia Pessoal

   


    Pelo prefixo do Paulistinha: de onde era ou é? Também por aproximação: que trecho do litoral catarinense (fica a dica)? Em primeiro plano, além do "Lambe-Lambe", quem é o outro piloto? Agora é piloto agrícola ...

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