domingo, 31 de janeiro de 2021

Enfrentando o Ventão

   Enfrentando o Ventão


         Meus cinco leitores já devem andar de saco cheio com  minhas constantes afirmações de que já estou no hangar até antes do Sol nascer, em dia de vôo.
          Mas não é mentira.
          Como sempre faço vôos longos, quanto mais cedo sair, menos turbulências, ventões, etc.
          Nada como voar de manhã, no fresquinho, sem vento, pressão do ar  alta, atmosfera estável. Os comandos respondem exatamente como esperamos.                                           
         É uma delícia voar assim. Só não saio mais cedo, pois também dependo da luz, para minhas fotos.
         Pois bem, em mais uma madrugadinha lá se ia  o Lambe-Lambe rumo ao aeroporto de Caçapava do Sul. Deveria o sujeitinho fazer o traslado do 15 BIS, daquela simpática cidade e acolhedor mas fechado aeroclube, para São Gabriel, coisa duns quarenta minutos de vôo em circunstâncias normais.
         Esperava chegar na pista sem nenhum vento, pois ainda era escuro e a previsão era de tempo bom, com possibilidades de alterações meteorológicas  apenas no dia seguinte.
         Assim, fui checar o valente companheiro para esta jornada que se afigurava tranquila e rápida.
         Para quem não sabe, Caçapava do Sul localiza-se no alto dum platô, com quatro cabeceiras, sendo que as pistas formam um “L”.
          Uma delas começa, a Leste bem num dos lados do platô, o de maior altura e termina num descidão dos graúdos. Para se ter idéia da real dimensão do desnível, basta dizer que o aeroporto está a 1350 pés e lá embaixo a altitude não chega a 300 pés.
          Fica fácil imaginar o tamanho das turbulências orográficas num  lugar assim. A Pista Sul Norte começa numa descida forte e termina já quase na cidade. Resumindo, em dia de vento, o melhor para se voar dali, é de carro.
         Mas eu estava lá de manhãzinha, sem vento, portanto, tranquilo que nem água de poço.
         De repente um fantasma dá um sacolejão numa porta do hangar. Acho  até que seria melhor,  fosse, de fato, o dito ser de outro mundo.
         Volto aos preparativos do vôo quando o fantasma insiste. Saio para a rua e já o bicho andava aprontando em todos os lugares. Os eucaliptos estavam agitados, uma leve poeira subia da pista de terra.
         “Bem, lá se foi o meu traslado.”
         Mesmo assim prossegui  o preparo da aeronave, com a desculpa de que  mais tarde ou no dia seguinte, quando o vento acalmasse, já estaria tudo pronto.
         E muitos de vocês sabem o que é a ansiedade por voar.
         A gente planeja um vôo. Se no primeiro dia não der, aceitamos o fato sem maiores traumas. Se no segundo também não for possível voar, já ficamos cabreiros. No terceiro, bem, no terceiro, somos capazes de achar que um furacão é apenas uma brisa suave.
         Mas eu não ia cair nessa, prometi-me. “Vou esperar” – pensei.
         Fui à cidade, tomei um café, sempre de olho na agitação das árvores.
E, isso mesmo, elas estavam se acalmando. O vento diminuía, especialmente para permitir meu vôo.
         Voltei correndo para o aeroporto, abri o hangar às pressas e me fui para a decolagem.
         A cabeceira mais favorável era a Leste-Oeste (mais ou menos), sendo que, no final, havia, à direita, a pista Sul-Norte.
         Havia mil metros de pista à minha disposição. Dava para fazer umas quantas decolagens, se preciso. Embora o vento fosse de través, preferi tal cabeceira, pois não iria direto para cima da cidade com as turbulências de edificações, árvores, etc.
         Dei manete a fundo e o Fusquinha 1600 correspondeu. Ganhei velocidade normalmente, baixei levemente a asa direita, de onde vinha o vento e fui compensando o través. Quando, porém, perdi contato com o solo, a guinada à direita foi violenta. O 15 BIS queria voar de lado de qualquer jeito.
         Aí dei-me conta de que o Vento Norte não estava para brinquedo. Como tenho aquilo  e tenho medo, tomei uma rápida e acertada decisão. Já que o avião derivava tanto para a direita, era só deixar a natureza agir, alinhar com a pista  Sul Norte e pousar feito um helicóptero, pois a velocidade do vento era medonha. Pois não é que deu certo?
         De pernas bambas e molhado de suor,  fui para o hangar e fiquei bem quietinho.
         “Todo o vento Norte sempre enfraquece ao entardecer. Dificilmente continua forte ou aumenta à tardinha. Vou esperar.”
         Voltei ao centro, agora para o almoço.
         Um olho no prato, outro na agitação das árvores que via pela janela do restaurante.
         Estavam quase paradas, de novo.
         “Vento pirado, esse. Aumenta e diminui tão rápido.”
         Aeroporto de novo. A ansiedade por voar, cada vez maior. As árvores balançando me pareciam estar na mesma agitação de tantas outras vezes em que voara sem problemas. Era voar o quanto antes, a fim de evitar que a natureza mudasse de idéia.
         Dessa vez encarei a pista Sul-Norte. O ventão, se existisse, bateria direto na cara e não haveria alternativa, para pouso em pista perpendicular.
         Saí do chão com uma facilidade, como se o motor fusquinha tivesse uns 200 hps... Ganhei altitude rapidamente e achei que tudo estava dentro da normalidade. Pouca turbulência. O vento, de fato, amainara.
         “É para já que estou em São Gabriel” – matutei.
         Mas antes de curvar à esquerda, rumo à terra dos Marechais, há que se avaliar muito bem a situação, pois havia um baita vale a ser transposto. E se houvesse vento no meio dele?
         Já estava estranhando a demora em chegar, a partir do aeroclube ao Posto da Polícia Rodoviária, coisa de uns 8, 9 km, no máximo, e quase quinze minutos de vôo.
         “Devo ter-me enganado ao disparar o cronômetro”.
          Mesmo assim achei  melhor averiguar os acontecimentos e comparar a velocidade indicada com o GPS. Bem na hora em que olho pro GPS, este indicava a extraordinária velocidade solo de 40 km/h e a indicada era de 111 km/h. Ou seja, estava com um ventão de proa de 70 km/h.
         O que não tem solução, solucionado está – diz o ditado.
         Com um ventão daqueles, oferecer a asa para o vento num aviãozinho lento, leve, e de pouco motor,  numa área de morros, era fazer a alegria das funerárias e a tristeza da seguradora. O jeito era seguir reto, rumo a Santa Maria, esquecer S. Gabriel e, com sorte, pousar quebrando o aparelho em alguma lavoura, lá por S. Sepé, onde havia muito terreno plano.
         Mas a conformação do terreno conspirava contra mim. Estava bem no alto duma cordilheira e, desviar-me para um dos lados poderia significar a entrada no meio dum rotor dos ferozes ...
         E o surpreendente da coisa é que um ventão com aquela velocidade, sobre um terreno acidentado quase não gerava turbulência. Era quase como voar sobre a água.
           Claro que a essas alturas eu já estava lá no décimo andar, mas não passara dos três mil pés. Desisti de continuar subindo porque uma vez, quando tentara fugir dum ventão Leste, acabei entrando numa zona de ventos cruzados, coisa de arrepiar os cabelos do nariz ... Naquela ocasião voltei imediatamente à doce e previsível turbulência orográfica.
             Neste caso, a velocidade do vento era aterradora, mas a turbulência quase nula. O jeito era ir remando, remando, a quarenta, cinquenta, no máximo sessenta quilômetros. Os tanques estavam cheios, dava para sair dos morros e chegar à zona das lavouras de arroz. Num aperto, até a Base Aérea de Santa Maria poderia servir para um pouso de emergência. Comandos na mão direita, carteiras de piloto na esquerda ...
         Quando estava quase fora da zona acidentada, arrisquei uma curva derrapada à esquerda, preparado para o imediato retorno à proa antiga, caso o avião sacudisse, derivasse muito. Nada de grave aconteceu. Atento, esperando que tudo voltasse ao pavor antigo, recorri ao meu EIC (Equipamento Indicador de Cagaço). Trata-se duma prosaica garrafinha PET de 600 ml, com água. Tem uma precisão que vocês não imaginam: se num dia frio, num vôo relativamente curto pouso com ela vazia, podem estar certos – algo muito sério aconteceu... Meia garrafa, vôo estressante. Um quarto de garrafa, apenas uma sedezinha ou alguma turbulência. Garrafa cheia, piloto feliz – raro vôo sem susto.
         E explico porque são raros os vôos em que não levo algum sustinho. Acontece que vôo numa pandorguinha, com confiável, porém fraco motor VW1600, durante longas horas (quase sempre três – sem escala), sozinho, sem apoio e em regiões, muitas vezes desconhecidas. Assim, dificilmente não pego uma viração de vento ou outro imprevisto.
         Tomei minha água e como não aparecessem grandes turbulências, fui indo, fui indo, sempre procurando as cristas dos morros, das coxilhas, nunca deixando que o vento que vinha da direita me pegasse à esquerda das elevações.
         Quando cheguei a Vila Nova, onde há um acentuado desnível, perdi uns 15minutos de vôo, seguindo pela crista do planalto até um ponto onde julguei que o rotor não seria tão violento, pois o desnível era mais suave. Mesmo assim, entrei na descida com a garganta seca e a camisa molhada.
         Felizmente não precisei sujar a cueca...
         O pior passara. Estava conseguindo uma velocidade solo de até 80 km. Isto é,  o vento de través me roubava 30 km. Isto indicava que o Nortão não dava folga pro Lambe-Lambe.
         O indicador de cagaço aumentando. Terminara a garrafa dágua e começara uma de coca-cola ...
         A preocupação agora era o pouso, já tido como provável, em S.Gabriel. Pousar com um traiçoeiro Vento Norte de até 70 km, era de amargar ...
         Mas, como falei, o que não tem solução, solucionado está. Sei lá como ainda consegui fazer umas fotos, com toda aquela tensão.
         À medida em que me aproximava do pouso, GPS e velocímetro começaram a se entender melhor.
         Chegando no aeroporto, a velocidade do vento era de 10 km. Para quem enfrentara rajadas de 70, calmaria pura.
         Pousei sem problemas, mais uma vez jurando para mim mesmo que jamais deixaria a ansiedade me levar a um vôo tão perigoso.
         Cumprir tal promessa já é outra história ...
         E, com licença, que só de escrever sobre a experiência me deu uma sede ...
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