sexta-feira, 15 de abril de 2011

Quase Peão

Prosseguindo com as histórias do piá arteiro que fui, mais uma das aventuras contadas no livrim "Lembranças de Guri", cuja milionésima edição esgotou-se. Excepcionalmente, mediante pagamento de U$ 1.000,00, podemos providenciar cópia  de volume histórico e remeter via Varig ...
Quase Peão

Minha sina como cavaleiro era triste. Sempre me sobrava a égua Caturra, embora reconheça que o pessoal tinha lá suas razões. Afinal, não se vai largar um toco de gente, com pouco mais de quatro anos, em cima dum animal ligeiros de cascos.

Assim, lá me ia, contando passo, botar as vacas, jogando carreira com alguma lesma que, porventura, aparecesse. Entretanto, apesar da moloideza da égua, seguidito, pimba: lá voltava eu com a montaria a cabresto, pois quando caía, não conseguia montar de novo.

Os sonhos, no entanto, eram altos. Neles me via em cima do Brilhante, o único colhudo da fazenda, montaria exclusiva do Vô Donato. Se não desse para ser no Brilhante, pelo menos no Gato, o segundo colocado na hierarquia eqüina da "Bom Retiro".

Buscando chegar mais perto do meu sonho impossível, tratei de ver se diminuía minhas quedas e, quando se deram conta, fazia mais de semana que botava as vacas sem cair. Minto, caí uma vez, mas tive a sorte de achar um cupim por perto. Estacionei a Caturra do lado, subi no cocuruto e me vi montado de novo, sem que ninguém ficasse sabendo do tombo.

Meu currículo de cavaleiro melhorava.

A confirmação de que estava sendo observado não demorou. Num dia modorrento de verão, quando a peonada estava parando rodeio, fui convocado para dar água ao Gato.

O nome já esclarecia que era um cavalo muito ágil. Além do mais, bonito: pêlo branco, sempre lustroso, crinas parelhas, cascos em ordem, sempre um orgulho para quem o montava - o Vovô, nas lidas, ou pessoa muito estimada por ele, a passeio.

A distância entre a sede da fazenda e o açude era de uns quatrocentos metros lançante abaixo.

Fui erguido para o lombo do flete, em pêlo.

Antes da porteira, segurando as rédeas, o Vô foi passando as instruções: para evitar disparada do cavalo, evitar movimentos bruscos, não cantar nem assobiar, ficar muito atento às orelhas do animal - as duas erguidas, levemente inclinadas para a frente, sinal verde, tudo bem; movimento desencontrado, uma para a frente, outra para trás, amarelo, cuidado, disparada em cogitação; duas orelhas murchas para trás, não há muita coisa a fazer, tragédia iniciando, a disparada já começou, o jeito é se agarrar às crinas com unhas e dentes, encurtar as rédeas e torcer para que o animal obedeça.

Instruções recebidas, lá me fui, o coração saindo pela boca, de emoção, faceirice e medo. Coxilha abaixo, pedia a Deus para não permitir que uma perdiz levantasse seu barulhento vôo, um lagarto saísse correndo ou qualquer outra coisa viesse a assustar meu bagual.

Como o mormaço empreguiçava tudo, nenhum bicho se mexeu e percorremos em paz o trajeto. Chegamos ao açude, o Gato saciou a sua sede e agradecido pela minha bondade em encher a sua pança d'água, voltou tranqüilo para o seu piquete.

Fui apeado com ares muito importantes. Já montara o Gato, o cavalo do patrão.

E mais: em pêlo.

Provara que era cavaleiro. E corajoso, para arrematar!

Esse êxito inicial me abriu as portas para coisas maiores.

De novo estavam todos no campo e era hora de buscar as vacas. No piquete, só o Gato. Resolvi arriscar.

- O que é que tem? Eu já levei ele no açude. As vaca tão logo ali, antes da Restinga. Eu não vô caí!

Meio sestroso o Vô concordou, repetiu os conselhos, achou melhor botar em enxergão e um pelego sobre o lombo e me liberou campo a fora.

Conhecendo de sobra a agilidade e a obediência do cavalo, eu fora proibido de usar qualquer coisa parecida com relho ou mango, só comandos de voz e rédea.

Outra coisa, nada de galope.

Pois o flete estava a fim de colaborar comigo.

Saiu devagar, contando passo, "que não estava a fim de derrubar o potrilho-de-gente, tão bom, que lhe dera água naquele desgraçado meio-dia em que a sede quase o deixara louco".

Mas eu pensei diferente:

"Se é para andar assim, qual diferença que tem para a égua Caturra?"

Aí cometi um dos maiores erros da minha curta vida de peão. Para aligeirar o trote, inventei de colher um pedaço de vara de alecrim, que naquela época estavam altas e podiam ser alcançadas mesmo do lombo dum cavalo.

Pois foi eu me curvar, o Gato ouvir o estalo da vara se quebrando e, pronto, lá estava o terrível sinal: as duas orelhas murchas, deitadas para trás.

Transido de pavor segui as instruções o melhor que pude. Agarrei-me às crinas com todas as mãos e dedos que tinha, entreverando com as rédeas, que não larguei, mas também não puxei, encurtando, para frear a disparada - e eu era bobo de largar as crinas?

Só sabia dizer:

- Piiiicho! Piiiiiiiiiiiiiiiiíiiiiiiiiiicho!

Quanto mais piciiho, tanto mais corria o Gato.

A peonada voltava da Invernada da Várzea quando viu a coisa: o gato numa disparada de louco e, o pior, montado pro algum miúdo. "Só pode dar muito osso quebrado ou morte, que parece a coisa mais certa, que Deus nos livre e guarde!"

E arrancaram num galope desesperado a ver se conseguiam cortar a disparada.

"Acho que esse potrilhinho-de-gente agora toma jeito. Onde já se viu um meio-quilo desses atiçar um bagual de minha qualidade? E ainda com vara de alecrim. Sou cavalo que merece comandos com relho de cabo com detalhes em prata-e-ouro, mango trançado no maior capricho, como os de meu dono. Havéra de se vê - vara de alecrim ... Cada uma! Mas acho que já deve ter aprendido a lição. Além do mais, sou cavalo e não burro, para me atirar correndo nesse macegal aí. Sabe-se lá que buraco ou atolador pode ter."

E parou.
Foi o quanto estacou e já estou cercado de excelentes cavaleiros, alguns até domadores, que não acreditavam no que viam. Tinham pensado que era um miúdo. Mas não tão miúdo assim.

- O quê? O Pançudo montado no Gato? Só pode tê fugido!

Em cima do cavalo branco, um ginete mais branco ainda, de cagaço. Que falou:

- Não fugi coisa nenhuma. Ia era botá as vaca e foi o Vô quem me montô. Até botô o enxergão e o seu pelegão vermelho.

Que eu perdera na disparada ...

Alguém falou:

- Acho que o véio tá ficando caduco.

O susto passara. Acharam os perdidos, me ajeitaram de novo na montaria e fomos, todos juntos, buscar as vacas.

É claro que, disfarçadamente, sempre tinha um do meu lado. Nunca se podia saber o que inventaria de novo.

Na Bom Retiro, em final de tarde de verão, um piazito de quatro anos desmontou do cavalo do patrão, voltando duma campereada com a peonada toda, tendo seu causo para a roda do mate.

Durante meses ninguém agüentou tanta repetição da disparada do Gato, com o infalível final, perna cruzada em cima do joelho, que nem gente grande, e depois de dar uma cuspida para o lado de montar:

- E de em pêlo, viu?

Florianópolis, 13/02/1983

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