quinta-feira, 23 de junho de 2011

Continuando com as "Lembranças de Guri"


Hoje, mais uma crônica do livrim que está na sua bilionésima edição e que pode ser adquirido, ainda, por apenas vinte pilas.
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Se o livro não chegar, o importante é que seu dinheiro já chegou e já foi gasto ...

Falando sério, o livro existe e pode ser comprado.
Dia de Finados

- Velha, arruma a vianda, que amanhã eu não venho almoçar. Vou pro cemitério e só volto à tardinha - falou o vô Donato.

- Na manhã seguinte, mal a Estrela D'Alva apontava, lá se ia ele, garboso nos seus oitenta anos, a trote, no Brilhante, rumo ao cemitério.

Ia fazer uma limpeza a capricho para esperar o dia de Finados. Trabalhava de Sol a Sol, incansável como um rapaz de vinte anos e, se não terminasse, voltava quantas vezes preciso. Só não deixava que o serviço fosse feito inteiramente por outros; consentia apenas que o ajudassem. Talvez quisesse dar o exemplo, pois sabia que sua hora não estava muito distante, esperando receber as mesmas deferências depois de se ter bandeado.

Ao ver tais preparativos eu ficava faceiro. Não que fosse voltado para assuntos de necrologia. Era só porque no dia de Finados podia andar de carreta até enjoar, atravessar a Restinga - meu divisor de mundos na época - e comer pitanga da boa.

Durante o ano todo minhas andanças não se restringiam à Invernada da Frente, ao Potreirão dos Fundos, jamais indo além da Restinga, mesmo quando ia botar as vacas? Nesse dia, com um pouco de sorte, podia até ser que cumprissem a promessa de me levarem à Fazenda Velha, lugar que excitava minha imaginação e que até hoje não conheço - nem vou conhecer, pois a local da tapera virou campo aberto, agora. Lá havia um butiazeiro, louco de carregado com umas frutas de fazer gosto. Apesar dos insistentes pedidos para que me levassem, o máximo que alcancei foi que o Gazi, um dos peões, um dia trouxesse uns quantos butiás bem amarelos, com gosto misterioso, vindos do inalcançável lugar.

Na véspera deitava cedo mas demorava a dormir. E torcia para que S. Pedro fosse bonzinho para com um piá expectante. Se chovesse, adeus passeio. Só no outro ano.

Se o tempo cooperava, logo depois do café uma junta de bois mansos - acho que o Caramelo e o Chatinho - era cangada. A Vó, alguma vizinha e as crianças subíamos, a carreta iniciando a viagem. Devagar, sem nenhuma pressa, que os defuntos não iriam fugir se o pessoal demorasse com as flores.

À aproximação da Restinga eram apelos, choros, súplicas, promessas:

- Ah, deixa eu descê. Não vô longe. Só pegá umas pitanga.

- Eu quero vê é se um bugio caga na mão e atira na tua cara! - falavam, conforme crença popular.

- Além do mais, diz que tem cobra por aqui.

Mas tanto teimávamos, que acabavam cedendo.

Nos íamos. Cada qual queria colher a maior pitanga, a mais madura, a mais doce, a mais vermelha. Na trepação de árvore sempre se aproveitava a feita para espiar as calcinhas e, com sorte, as sapinhas das gurias, elas também dando risinhos espremidos quando, pelo vão da calça curta, conseguiam ver algum pinto. Tempo para algo mais nunca deu. Como a carreta continuasse seu fúnebre caminho, dali a pouco alguém gritava:

- Vão imbora!

Do mato saía um bando alegre, com punhados de pitanga nas mãos, alguns com roupa manchada de vermelho e medo de apanhar.

Logo vinha um lagoão raso, atravessado lentamente, com todos embarcados para não haver molhação de roupa, iniciando-se depois a subida da coxilha do cemitério. Mais por folia, do que para dar folga aos bois a gente corria na frente.

Quando a carreta chegava com as mulheres, já estávamos empoleirados na cerca-de-pedra, dê-lhe comer pitanga de novo.

- Pára com isso! Tu não respeita nem os morto? Ainda por cima, o adubo dessas pitanga tão bonita é podridão de gente!

A mijada que nos davam era em surdina, pois não se fala alto em campo santo. E se a arte merecia surra, essa era substituída por fortes e silenciosos beliscões.

Enquanto os grandes se distraíam com suas flores e seus choros, sempre era possível o empanturramento com mais algumas pitangas, tanto mais gostosas quanto maior o beliscão recebido antes, como advertência:

- Se tu comê mais uma que seja, eu te arranco um pedaço.

E vinha um torcido, dos brabos.

As sombrinhas rumando para o portão indicavam que a visita havia terminado.

- Hoje vão na Fazenda Velha? Tá tão pertinho!

- Não dá. Tá tarde e o Sol muito quente. O ano que vem.

Pura mentira.

Até hoje não vi o butiazeiro encantado.


   Esta foto é de 2010, portanto, não do tempo de minhas excursões com as primas ...
Legenda:
1 - A ovelha "Norminha", guaxa que pensa que é cachorra... E a "Fera" cachorra que pensa que é cachorra.
2 - - Bem no alto, à direita, a famosa "Fazenda Velha", que agora é mato e campo.
3 - O mato, que corre na horizontal da foto é a famosa Restinga, com suas pitangas, bugios e outros encantos para a gurizada da época. Hoje, sempre que venho para pouso não tenho tempo de olhar as pitangas, nem de ser alvejado pela merda dos bugios ...
4 - Não aparece, mas bem no alto, à esquerda, a poucos metros do canto da foto, o cemitério onde a gente teimava em comer pitanga, os grandes teimavam em nos beliscar e os pobres defuntos ficavam esquecidos ...

* Tenho o privilégio de morar, trabalhar, voar, escrever e, uma vez por ano, ... na querência onde me criei,  fiz  arte e fui muito feliz.




Um comentário:

  1. Barbosa!
    Tens o telefone ou e-mail do Gilnei jardim? Aquele que comprou teu avião. É que estou vendendo um CH 701 talvez interesse a ele.
    abraço
    wiliam (fadec42@gmail.com)

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