Todo o aeroclube, toda a pista de ultraleves tem a indefectível figura.
O sujeito pilota uma barbaridade, faz o que ninguém consegue, entende de tudo, enfim, um ás no total sentido do termo …
Toda a vez que alguém passa por um sufoco, uma pane, um pouso de emergência, lá vem ele com a infalível frase:
- Por que tu não fizeste como eu, uma vez quando o motor rateou …
O eu é o único pronome que conhece. Eu faço, aconteço, etc. etal.
Mas, uma coisa é pilotar sentado à frente duma gelada, outra, bem diferente é enfrentar o pepino em tempo e espaço real. Não se trata de mera simulação: o pau, lá na frente está parado, a pista mais próxima fica a milhares de quilômetros e o piloto tem que levar o "aparelho" a um "choque com o planeta Terra", como diria o Chico Ledur, o mais suave possível. Se der, com o aviãozinho plenamente utilizável ou, ao menos, com o seu condutor saindo com todos o ossos inteiros.
É muito fácil pousar sem motor, sem algum dos comandos, enquanto a cerveja dá mais perícia e reflexos ao entendido. O difícil é estar lá em cima com árvores, morros e o gado, embaixo, na maior tranqüilidade e indiferença com o problema ocorrido com a refrigeração do aviãozinho, pois, de repente o piloto começou a pingar suor uma barbaridade. E vacas lá, no único trechinho mais ou menos pousável.
Pois vou relembrar aqui a pane que o Fernando Velho Costa enfrentou com muita competência. A pior delas: o comando do profundor desconectou-se.
Imaginem vocês: a gente lá em cima, puxa o manche e sente aquela leveza apavorante. Puxa mais ainda, nada.
Empurra: leve, leve. Pica até o fundo, mais leve…
O pavor injeta litros de adrenalina no sangue. O coração dispara. A garganta seca como se por dias não se houvesse bebido uma única gota dágua.
O pior dos pesadelos trás a agonia da morte não para o sono, mas para a realidade e o piloto sente martelando no cérebro a expressão tantas vezes ouvida: "com pane de profundor, só resta rezar".
Crente, descrente, ateu, à toa, agnóstico, pernóstico, todos rezam nesta hora.
Mas somente rezar talvez não seja suficiente. Quem sabe, totalmente ineficaz.
Algo deve ser feito.
É onde se faz a diferença entre pilotos-homens e pilotos-meninos.
Vendo a morte com o gadanho erguido, lá embaixo, só esperando a chance, um homem reage, um menino grita pela mãe, entrega a rapadura.
Para completar, o Costa levava um passageiro. Para deixar a coisa mais tensa ainda, criança de seus oito, nove anos.
O Fernando fez a diferença entre homens e guris.
Tratou de não fazer curvas fortes e ir testando a reação do seu ML400 (naquele tempo ele pilotava ultraleve, no verdadeiro sentido da palavra - não o RV-9, RV-7, sei lá, que é um baita avião, isto sim) com o uso do compensador e uma aceleradinha ou reduzidinha de manete.
O pepino, de tão graúdo era uma melancia e das grandes …
Suando até pelas unhas, tenso que nem corda de violão, tratava de manter o ML no ar. E estava conseguindo voar relativamente nivelado.
Voar em linha reta horizontal é a primeira aula prática de nossos cursos. O abc
da pilotagem em situação normal ele conseguia executar sem o mais importante de todos os comandos.
Isso já era uma senhora façanha.
Mas todo o avião que está em vôo tem que pousar. Para pousar, tem que perder altura. Para perder altura, há que se picar o manche, quando ele funciona.
E o Costa pensando: "Se, na hora de picar o compensador, o avião entrar numa atitude de mergulho e não sair mais dela?"
O que não tem solução, solucionado está.
Se não tentasse, uma hora a gasolina acabaria e, aí, sim, a vaca se iria para o brejo. Sem profundor e sem motor …
Tomou a decisão certa, começar a descida e torcer para que desse certo.
Com todo o cuidado do mundo picou levemente o compensador.
O ultraleve respondeu suavemente e começou a descer.
Agora vinha o momento do tudo ou nada: hora de neutralizar. O que aconteceria?
O aviãozinho sabia que duas vidas deviam ser preservadas, dentro do possível.
Começou a erguer o nariz suavemente.
Era como se o Sol nascesse depois de uma noite de tormenta e sem Lua.
Havia esperança. Não entrariam de nariz, a noventa graus.
Qual seria o ângulo da placada? A que altura estolariam?
Estas perguntas repetiam-se numa rapidez vertiginosa.
Um avião, duas vidas, um simples pino solto. O fim de tudo estava por um fio de cabelo. E pelo sangue-frio do piloto. Corrigindo, sangue ainda não fervente, pois numa situação desta ninguém pode mantê-lo. Apenas não perde o controle, ainda que os cabelos ergam o capacete de pavor.
A pista, na época era menor, creio que 360 m, iniciando por aterro e terminando entre barrancos, com linha de alta tensão na cabeceira. Era pousar ou pousar. Arremetida fora de cogitação.
Já exigia perícia em circunstâncias normais. Sem profundor, perícia e sorte.
Enquanto deu o Fernando testou o compensador, as reações do ultraleve.
Também testou a reação quando diminuía o motor. Foi pegando a mão da sincronia entre compensador e manete, isto no ar, em vôo quase nivelado.
Na reta final, a descida definitiva, com maior ângulo na rampa, o que aconteceria? Nenhum instrutor havia falado sobre isso. Apenas lembrava-se de que "pane de profundor era lucro pras funerárias".
Encarar a descida para a pista com uma frase destas martelando as idéias não deve ser a melhor coisa do mundo.
A Aldeia dos Anjos (nome do Sítio de Vôo) aproximava-se.
Agora é que o homem mostraria porque não era menino.
Reduziu o motor, picou suavemente o compensador e manteve o alinhamento com o eixo da pista.
Como o Fernando é médico, preveniu o guri que o acompanhava para que, chegando bem perto da pista, se encolhesse, evitando que o impacto fosse direto sobre a coluna.
Nunca aqueles seiscentos metros de aproximação demoraram tanto a passar.
Nunca uma cabeceira passou por baixo tão rapidamente.
Era agora: arredondar ou ir chão a dentro.
Cabrou o compensador e reduziu o motor.
Só que os ML, pela posição do motor - atrás e ao alto - quando há redução da manete, tendem a erguer o nariz e foi o que aconteceu.
O ultraleve ganhou novamente altura e a seguir estolou, placando com extrema violência.
O passageiro, criança, mais leve e, seguindo as instruções do comandante, saiu praticamente ileso.
O ML ficou quase que destruído.
Com o Fernando Costa, infelizmente, a coisa complicou. Fraturou um vértebra. Isto porque, no instinto de piloto, bateu no solo com as pernas esticadas, a mão no manche, indo todo o impacto para a coluna.
Mas, sua coragem, perícia e atitude foram recompensadas. Após cirurgia e tratamento, recuperou-se, voltando a caminhar normalmente e a pilotar, sendo que agora anda faceiro no seu RV.
No meu entender, acho que pouquíssimos de nós conseguiriam levar um ultraleve sem comando de profundor a pouso em que um saísse ileso e outro com lesões recuperáveis. O fato de destruir o aviãozinho, para mim é insignificante.
Pois é, mas não faltaram "pilotos", "mui amigos", que começaram a dizer que ele não deveria ter reduzido tanto o motor, que poderia ter cabrado menos o compensador, ter feito uma rampa mais suave. Essas coisas que os ases de mesa sabem falar, como se aviação fosse que nem futebol e existisse pilotagem de botão …
Segundo consta houve até um que quis levar a coisa ao extremo e tentou um pouso sem comando de profundor. Mas ele fez tudo na maior tranqüilidade, sabendo que, se a coisa encrespasse, o profundor estava ali, disponível, era só usar.
Assim, sem tensão, a coisa fica muito mais fácil. E o tal conseguiu pousar.
Pena que pilonou …
Ainda bem que saiu ileso.
Mas que nunca mais tentou o tal tipo de pouso.
O narrado é verdade e dou fé.
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