Dica Infalível para Passar Vergonha
Este escrevinhador,
retratista e motorista de teco-teco viajou muito pelo Sul
do Brasil.
Felizmente por quase todos os lugares por onde passei fiz
amizades e sempre fui bem acolhido.
Lá por 1996 inventei de comprar um mais pesado do que o ar,
mas não muito. O teco era um ultraleve Netuno, motor Vw de 2,2 litros, biplace, lado a lado. Era
lento, limitadíssimo, com cruzeiro de 60 mph e VNE de 65 mph. Atentem para a
proximidade entre as duas velocidades. Também tinha uma outra característica:
os comandos respondiam uma hora depois de acionados e, segundo o vendedor –
excelente piloto de garimpo, capaz de voar um cabo de vassoura com uma tábua de
atravessado – o comando menos inconfiável era o leme. Então o jeito era
pedalar, pedalar, para corrigir as quedas de asa, fazer curvas, etc.
E que o confirme o Luques, que anos mais tarde se interessou
pela compra deste avião com nome de Deus das profundezas ... Um avião com um
nome destes não poderia ser, assim, uma Brastemp.
Dizem que o dito piloto teve que comprar cuecas novas com calça e tudo
ao voltar para Uruguaiana, após nosso voo demonstrativo, com garoa, vento
Minuano e turbulências orográficas para completar. Era um tal de pedalamento
que até daria para participar da Volta Ciclística da França com chances de
vitória, pois minha musculatura pernal-pedalante estava em excelente forma.
Apesar de todas as limitações do aviãozinho, fiz cada uma
com ele que nem lhes conto: tipo ir de Gravataí no RS (Grande Porto alegre –
para quem não sabe) a Araranguá, já em Santa Catarina, com um Nordestão de proa
que me dava a espantosa velocidade-solo
de quarenta milhas por hora. E muitas
outras loucuragens de quem tem vento no lugar de cérebro na cabeça.
Sabedor
dos limites do “aparelho” e dos meus próprios, sempre procurei voar bem cedo, quando
a atmosfera está mais calma.
Acontece que pela espantosa velocidade de cruzeiro, qualquer
afastamento da pista podia significar um retorno demorado, com viração de vento
e outros bichos mais, inclusive as térmicas que davam cada pataço na asa do teco,
coisa de assustar o cristão.
Num belo dia madruguei mesmo, lá pelas quatro da manhã, pois
queria estar na pista antes do nascer-do-Sol.
E cheguei lá em Itapuã – não da Bahia, mas em Viamão, região
metropolitana de Porto Alegre, antes do Astro-rei dar as caras.
Abastecimento, cheque, etc., com uma meia hora após o nascer
do Sol, lá estava o Lambe-Lambe rumando para algum lugar onde devia fazer
“retratos” panorâmicos.
“Fi-los porque qui-lo” como dizia o Jânio Quadros. Só que
até fazê-los por querê-lo, já eram quase umas onze horas da manhã, o Nordestão
chegara e forte, de mãos dadas com as térmicas pois era um dia quente.
Viemos, o teco e eu brigando com o vento de través,
turbulências, quedas de asa até chegar à
pista em Itapuã.
Este manicaca já desenvolvera um sistema verificador de
condições gerais para pouso altamente confiável: era olhar para uma floresta de
eucaliptos que havia ao Sul da pista e verificar a movimentação da parte mais
alta das árvores.
Quando apliquei meus conhecimentos científicos não gostei do
resultado: a copa dos eucaliptos trocavam de posição entre si numa velocidade
...
“Teremos que trabalhar muito” – falei para os pedais, pés e
pernas ...
E nos viemos para o pouso “tranquilo” ...
Ah,
a aproximação era por cima dumas fiqueiras altas, devidamente enraizadas num
morrote, seguidas por um vale que exigia afundamento preciso para não chegar
muito alto na cabeceira da pista, tudo com um rico vento de cauda.
Mas a situação era pior do que parecia.
Foi um tal de chacoalhamento que afrouxou até o Certificado
de Marca Experimental. Cheguei na cabeceira muito alto e nem tentei tocar, indo
para a arremetida que, mesmo com vento de cauda, não me levou pro chão.
Como não sou ou não era mui assustado, mas também louco de teimoso,
resolvi uma segunda “tenteada”.
Vim mais baixo, com velocidade, por causa do vento caudal,
mas quando toquei senti que não conseguiria parar antes da cerca na cabeceira
oposta.
Outra arremetida e criei juízo, desistindo do pouso ali.
Como o saudoso Ivan “Xiru” tinha uma pista a uns cinco
minutos de voo e que era aproada com o vento daquele dia, me fui para lá.
Só que o “vento daquele dia” estava forte uma barbaridade.
Quando o “Xiru” me viu voando, me xingou de louco,
irresponsável, essas coisas e com toda a razão.
Na primeira tentativa, vim veloz, propositadamente, para
testar as condições de aproximação e pouso.
O “Xiru” gesticulando furiosamente, com o indicador
circulando a orelha, dizendo com todos os gestos: “Louco de atar”.
E também sinalizava cruzando os braços violentamente – nem
pensar em pouso aqui.
Na segunda tentativa achei que até dava pro pouso, mas ainda
vim um pouco veloz, para ter comandos.
Ao passar frente a seu hangar, ele apontava desesperadamente
no rumo do Aeroclube de Belém Novo, a uns vinte e poucos quilômetros, com sua
pista asfaltada de mais de mil metros, cabeceiras livres, estrutura de apoio,
asfalto para chegada rápida de bombeiros, ambulância, IML, funerária ...
Com
aquele ventão e turbulências achei que era mais seguro tentar o pouso em local
cujas características já testara e, segundo meus movimentos friamente
calculados, permitiriam um pouso sem grandes riscos de demolição da aeronave,
piloto, etc.
E nos viemos: passamos, o tequinho e eu a cerca da
cabeceira, usando a parte afastada das árvores da lateral da pista e não é que
tocamos e deu pra parar antes da cerca oposta.
Depois de ouvir o sermão merecido, recebi o convite para
almoçar com ele e sua família.
Aceitei, até porque não havia alternativa: ele não
permitiria que eu decolasse de sua pista com aquele vento.
O almoço estava muito do bom, mas vocês sabem como é: todo o
piloto sofre da síndrome do retorno ao seu hangar.
Comecei a achar que o vento havia amainado, que, logo, logo
poderia decolar.
E o Xiru me segurando. “Deixa de ser louco! Tem lugar aqui
no hangar. Vem outro dia, com calma e segurança.”
E o maluco aqui
insistindo em decolar.
Pois não é que lá pelo meio da tarde o vento amansou um
pouco?
Até o anfitrião deu o
braço a torcer e concordou que daria para decolar.
E este foi o seu erro.
Chequei o teco, embarquei e preparei-me para taxiar rumo à
cabeceira em uso.
Havia um aclive entre o hangar e a pista,
mas não exigia reboque ou empurrão manual, segundo os meus cálculos científicos
e leis da física em vigor.
Dei-lhe manete moderada e me fui. Mas o aclive era maior do
que eu pensava ou a maciez do terreno segurou o tequinho, exigindo mais motor.
Afundei a mão: os 2.200 cm 3 do Volkswagen responderam à
altura e conseguimos chegar à pista. Quando curvei para abanar, despedindo-me
do meu anfitrião, vi o tamanho da cagada: ele e o filho tentavam segurar as
asas dum avião em montagem, havia um tal de esvoaçamento de plantas
aeronáuticas, queda de latas de tinta e toda a bagunça possível e imaginável
que um motor a pleno pode causar num hangar com a porta aberta.
Fiquei
com vontade de abortar a decolagem, voltar lá para pedir desculpa e ajudar na arrumação, mas a vergonha era tanta que
dei um jeito de decolar.
Pousei no destino sem problemas e a primeira coisa que fiz
foi ligar, me desmanchar em pedido de perdão e perguntar se causara algum
prejuízo que eu devesse indenizar.
- Barbosa, não esquenta. Foi só uma dessarumaçãozinha.
Nenhum prejuízo. E uma limpeza geral para tirar a terra que jogaste por cima de
tudo.
Passei meses sem visitar o amigo mecânico e montador de
ultraleves, isso que a ida à pista do Karlchen, onde deixava o Netuno passava a
menos de mil metros da casa do saudoso Xiru que, paradoxalmente, morreu num
acidente por turbulência orográfica em aproximação de pouso na pista de Osório
– RS.
Que sou manicaca, reconheço. Mas também assumo meus erros e
tenho vergonha na cara.
Até
hoje me envergonho da tal burrada:
-
Onde já se viu dar toda a manete com a cauda do avião apontada para a porta de um hangar-oficina, com asas em
construção, apenas apoiadas em
cavaletes, sem qualquer fixação?
- É ou não causo de aplicar uma surra de urtiga num infeliz
destes?
Belo causo da aviação raiz!
ResponderExcluirParabéns 👏👏