Hora da avaliação dos estragos e providências de
eventual desmanche e transporte da maquininha voadora.
Trens
completamente intactos, hélice impecável, cabos de comandos livres e inteiros,
respondendo normalmente.
Nisto
chega o caseiro do sítio onde improvisara meu aeródromo. Expliquei-lhe o
acontecido e pedi-lhe o favor de me chamar um taxi, a fim de voltar à pista em busca de auxílio para resgatar o tequinho.
Enquanto ele ia providenciar meu pedido, reexaminei a situação: um ventinho meio misturado
com garoa, cinco horas da tarde no inverno, o que significava ficar trabalhando
no frio e no escuro até sabe-se lá quantas da madrugada. Os comandos estavam
totalmente livres, a estrutura nada sofrera pois o pouso fora suave. Avaliei as
possibilidades duma decolagem: havia, no sentido das vergas uns cento e
cinqüenta passos, com uma leve descida ao final, um banhado duns duzentos
metros a seguir e depois uma lavoura de cana em aclive, coisa perfeita para
outro pouso de emergência, se algo ocorresse.
“Ah,
não vou ficar aqui fazendo força no vento, à noite, se posso voltar voando.”
Alinhei
o marimbondo e saí num tal de roçar buva seca que era coisa linda de se ver. No
velocidade adequada chamei, respondeu e estava
voando. Seria outro vôo de caturrita? Não foi. Seguiu em linha reta,
como se nada houvesse acontecido.
Como
não sou bobo, havia tomado um solene propósito de usar o leme o mínimo
possível e, quando necessário, com a maior suavidade que, aliás, deve ser uma das
qualidades do bom piloto e do bom amante.
Não
foi necessário utilizar a alternativa canavial e, em três minutos estava eu
pousado na pista, numa invejável economia de tempo e energia em relação ao
retorno via reboque ou caminhão.
-
Mas que bicho foi que te mordeu? Disseste que só farias um turno de pista e
demoraste todo esse tempo? Já estávamos ficando preocupados, ainda mais que era
um vôo de teste.
-
A intenção era realmente esta, mas o leme trancou no final do curso para a
direita e tive que pousar numa rocinha, logo ali. Até reexaminar o avião,
avaliar a pistinha e concluir que dava para voltar voando, lá se foi quase uma
hora. Aliás, preciso ir lá acertar com o taxista que mandei chamar.
Pela cara concluí que ninguém estava acreditando no acontecido.
- Ficou foi voando todo esse tempo e não quer confessar.
O Netuno é semi-aberto, isto é, não tem a parte superior da porta. Isso permite que folhas de grama ou outros materiais levantados com a turbulência da hélice na decolagem possam entrar na cabine. Pois não é que tinha um monte de hastes secas das tais buvas que eu roçara na decolagem?
- Então me digam como é que consegui carregar toda essa sujeirada para a cabine!
O
Ivan Azambuja, que agora voa em céus mais amplos que os nossos se ofereceu para
me levar lá. A carona oferecida era mais para conferir se realmente não
estava dando uma de trovador ... Também usou como desculpa para fazer a
conferência, o desejo de lançar no GPS a localização da lavourinha, para um
eventual emergência com o Netuno dele.
O
caseiro também endossou o causo e mesmo sem eu perguntar, informou que não chegara a chamar o taxi, pois me vira decolando antes
de chegar ao ponto. Indaguei se lhe devia algum pelo trabalho, mas foi muito
parceiro e disse que jamais aceitaria dinheiro de alguém por prestar socorro
numa situação daquelas.
Voltamos e chegou
a hora da conversa de hangar. O que acontecera? Todos os comando estavam livres
e o restante mais normal ainda.
Durante
a semana começou a correr o boato de que eu quisera bancar o macho, saindo
naquele vento, me assustara e fizera o pouso por mero cagaço, não por comando
trancado.
Soube
disso, mas nada podia fazer, pois não se descobria a mínima possibilidade de
trancamento do leme.
Na
sexta-feira combinamos um encontro do Rudi, Zabiela e eu, para tentarmos
solucionar o mistério. Um reexame criterioso do ultraleve e nada – tudo
perfeito.
Já
estávamos por desistir quando o Zabiela teve uma idéia:
-
Barbosa, baixa a cauda do avião que eu quero ver uma coisa.
Com
a triquilha no ar, foi lá mudá-la de direção e notou um ruído estranho, como se
houvesse algo roçando.
-
Deixa eu conferir, falei.
De
fato, aquilo não era normal e além do barulho, estava pesada.
O
caminho era aquele. Restava descobrir onde era o roça-roça. Não demorou e
chegamos, indo de baixo para cima, ao assoalho interno do Netuno. Ali, os braços
de acionamento da triquilha encostavam no piso. Como o piso era fixado com
rebites, quando eu comandara em vôo, passara por cima do rebite e o comando
trancara. Se houvesse comandado com força teria livrado o leme sem problema,
mas, em pleno voo, lá ia eu saber disso?
E por que havia aquele encosto do braço de comando no piso? Coisa normal é que não era. Continuamos subindo ao longo do tubo e na extremidade superior, onde havia um limitador de curso da suspensão, alguém achou a tal bucha de teflon? Simplesmente sumira. Deve ter-se partido e saltado fora. Assim, o único limitador era o assoalho. No solo, o próprio peso do avião evitava que houvesse atrito com o piso. Assim que se iniciava o vôo, expandia-se a suspensão para baixo, repetia-se a porqueira de roçar as hastes no assoalho e, se o pedalaço fosse grande, as hastes pulavam os rebites e tranca-se o leme de novo.
Esclarecido
o mistério, foi minha vez de tripudiar:
- É, comandar no bar todo o mundo sabe. Sentado em frente ao copo de
cerveja não há quem não faça melhor o que alguém já fez. Meu desafio é o
seguinte: fixamos o leme no final do curso e o ás decola aqui desta pista crítica já sabendo da
situação. Aí, como não é “cagalhão que se assusta com o vento”, pousa na
lavourinha, destrava os comandos e depois volta para a pista. Pode até valer um
ultraleve: quem cumprir toda a tarefa fica com o meu, quem não cumprir, entrega
o seu ou o que sobrar dele.
É evidente que não tive que entregar o Netuno, tampouco ganhei algum ultraleve ou sucata porque não apareceu nenhum ás no desejo de encarar o desafio.
Quem é do meio sabe: o que tem de piloto corajoso, decidido, o maior "pé-e-mão" que já andou neste mundo, especialmente se o dito está com a bunda grudada no chão ...
Este é o inseto da aventura, em foto recente...
De 23 de julho de 1996.
A aventura do leme trancado ocorreu lá por abril de 1997.
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