Pois este manicaca
nunca foi muito assustado, chegando às vezes a ultrapassar a barreira da
coragem, entrando no perigoso e traiçoeiro território da loucuragem.
E explico:
Até 1984 minha experiência com aviões e voos
restringia-se a umas três ou quatro viagens em aviões de carreira e um curso de
voo livre feito pelo conhecidíssimo processo noscoxol.
Quanto
a este “curso”, estava o fotógrafo estabelecido com laboratório colorido e tudo
em Balneário Camboriú, no ano da Graça de 1981, quando, num domingo à tarde,
minha única folga na semana, me fui para a praia de Laranjeiras.
Lá estava eu, feliz da vida, tomando uma geladinha
quando, sem mais nem menos me aparece uma asa delta querendo pousar em plena
areia, num baita movimento daqueles. Claro que a concentração de gente era
milhares de vezes menor, mas não havia como pousar na areia sem causar um
acidente, até feio, com um ou mais banhistas.
O piloto não teve alternativa senão pousar na água.
Todo mundo meio assustado, pois já houvera casos em que a
arrebentação violenta impossibilitara que o voador pudesse desvencilhar-se da
asa antes de ser afundado, vindo a afogar-se.
No caso, o sujeito era bom no que fazia e soltou o
“mosquetão” antes de tocar a água, terminando o voo apenas segurando com as mãos
o trapézio, nada de pior acontecendo.
Eu, que fizera umas fotos do incidente, querendo faturar
uns pilas fui falar com o competente voador para dizer-lhe que sua aventura
ficara registrada. Demonstrou interesse e me convidou para ir junto com os demais
da turma – ele, instrutor e seus alunos - ao alto do morro de onde decolavam.
Convite aceito, como sempre fui meio bastante fora da casinha, sem avaliar
direito o que falava larguei:
- Bem que a gente podia fazer uma troca de fichas. Eu
registro em fotos as aulas e os voos e vocês me pagam com um curso de voo
livre. Fica bom pros dois lados. Vocês não precisam desembolsar dinheiro vivo
para terem excelentes fotos e eu, como tenho laboratório próprio, consigo fazer
as fotos com um custo mínimo e todos seremos felizes ...
Pois não é que aceitaram?
E vejam como as coisas mudaram daqueles tempos para cá:
como já era de tardezinha, em vez de montarem as asas em cima dos carros,
resolveram deixá-las lá no morro, um pouco afastadas da estrada, mal
disfarçadas com umas graminhas que jogamos por cima dos equipamentos. Vai fazer
isso hoje e para ver onde vai parar o material...
No outro dia estava tudo lá. E, repito, estamos falando
da mais movimentada praia de Santa Catarina.
Isso é só para reforçar a tese segundo a qual eu entrei
na aviação de uma forma, digamos, meio enviesada.
Como eu não rendia dinheiro vivo, trataram de me dar um
curso superintensivo, com queima de etapas e mais etapas ...
O meu voo solo já foi contado aqui.
Três anos depois entrava na fotografia aérea para valer
e, de tanto alugar aviões, os pilotos acabaram me convencendo a fazer o PP.
- O pior tu consegues fazer que é pagar as horas. O PP é
uma consequência lógica. Mas não me avisaram que as horas de voos fotográficos
não contavam para o PP. Teriam que ser horas exclusivamente de instrução ...
Voando e fazendo o PP, sem querer, enfrentava algumas
situações meio encardidas, pois teve ocasiões em que saí de Porto Alegre, fui a
Curitiba e voltei no dia seguinte, tendo no comando um guri com apenas 90 horas
de voo, meio assustado com a responsabilidade da navegação. Noutras, em caso
parecido, fui a Floripa e voltamos com a ameaça de uma frente fria nos
surpreender no retorno. Só pegamos a calmaria pós vento Norte, felizmente,
escapando da frente, por um triz. Chegamos no tanto quanto ...
Levando tanto cagaço e sabendo que o melhor remédio para
preservar os ossos inteiros é o tal sangue-frio, fui me acostumando com
desafios não programados (inclusive oito pousos fora) a ponto de me apelidarem,
numa cidade gaúcha muito hospitaleira, de “Piloco” ...
Parodiando o Novo Testamento: “E crescia o piloto nada em estatura e muito pouco em
sabedoria ...”
Seguiam-se os voos fotográficos, coisa de 14.7 h em
apenas dois dias e assim por diante.
Obrigatoriamente, andando por regiões desconhecidas,
microclimas também estranhos, volta e meia a cobra fumava, mas, juntando sorte,
calma e um pouquinho de competência as coisas quase sempre terminavam bem.
Mas aí inventei de comprar um ultraleve. Pior, comprei um
Netuno. Piorando ainda, no segundo dia da feliz propriedade, já estava
devidamente aninhado num bananal, lá em Tubarão – SC, por superaquecimento do
motor, coisa corriqueira nos motores VW adaptados nos ultraleves.
E seguiam-se os pequenos sustos, os médios, os grandes,
os medonhos.
Até aqueles do tipo: “Hoje eu não escapo!”
Mas fui escapando, tanto que escrevo estas memórias um
tanto marrom-amareladas, se é que me entendem ...
Tive até as famigeradas panes de decolagem, quando, numa
delas, pousei, após desentendimento com uma estronca de porteira, numa lavoura
de arroz, voando de dorso, com o profundor à frente, em canard, portanto ...
Segundo consta nenhum outro piloco conseguiu igualar o feito ...
Mas retomando o fio da meada e aí está o falecido
Trançudo que não me deixa mentir: As anteriores e outras destas experiências nunca me apavoraram tanto quanto a que segue:
Dizem que pressão arterial baixa é um privilégio e que
quem dela sofre deve considerar-se um felizardo, não um doente. Então sou o tal
privilegiado.
Sempre tem o famoso porém: sonolência ou apagão não
combinam com pilotagem solo. E pressão arterial baixa é amiga íntima da
sonolência e às vezes flerta com o apagão...
Até que este manicaca tomava cuidados para não dormir ou
apagar em voo: sempre levava água, alguma coisa para comer, um salzinho e um
açúcar nuns daqueles antigos protetores de filmes fotográficos. Só que sempre
fui muito desligado quanto à comida e se tenho que me concentrar em algo,
esqueço a fome e a sede. Ou seja: volta e meia fazia pernas de quase quatro
horas, pilotando e fotografando, sem comer nada e, pior, descuidando da
reidratação.
Estava o ás no céu da região Central do Rio Grande, lugar
quente, dê-lhe voar.
Já tinha praticamente terminado as fotografanças e me
encontrava a uns 10 minutos da pistinha.
Meu gosto nunca foi por navegação. Voar em linha reta,
distâncias longas, acho monótono e cansativo.
Pois tinha aquele dez minutos em que não fotografaria. Aí
a gente tem tempo para prestar atenção em ruídos estranhos, tendêndias
repentinas, vibrações inexplicáveis, etc. Tudo por falta do que fazer ...
E aí me lembrei que não tomara água, nem comera o kit de
salvação que sempre levava junto.
Pronto: foi me lembrar da desidratação e falta de energia
que, para já as vistas começaram a escurecer, um mal-estar me pegou de repente
e realmente achei que daquela não escapava.
Peguei o pacote de bolachas e no pavor nem abri direito,
comendo bolacha com papel e tudo. Me atraquei a tomar água que nem camelo, mas
o sombreamento da visão continuava.
Fui baixando, na tentativa de chegar ao solo antes de me
apagar de um todo.
Respiração de cachorrinho, rezas, promessas, tudo o que
se possa pensar.
O GPS marcando 9 minutos para pouso, depois oito.
Mas a visão meio obscura, com bolacha, papel, água e
tudo.
Confesso: foi a situação mais apavorante de toda a minha
manicacagem. Achei que daquela não escaparia, mesmo.
Quando estava chegando nos sete minutos, a queda de
pressão, que chegara sem aviso, passou e a visão voltou ao normal.
Agradeci aos Céus aquela Graça e pedi mais sete minutos
de bênçãos.
Fui atendido.
Pousei e fiquei quieto como criança cagada sobre o
assunto.
Se falo que tivera uma queda de pressão em voo, algum
barriga-fria era capaz de abir o bico na hora errada e a coisa chegar aos
ouvidos dessa tal de Anac. Aí, adeus aprovação nos exames médicos e lá se iria
uma carteira de piloto.
Durante anos guardei o segredo.
Nunca mais consegui voar com a mesma tranquilidade e o prazer
de antes.
Sempre com medo de que a experiência aterrorizante se
repetisse.
Pior que se repetiu.
Duas vezes. Mas, como uma vez dera certo, nas outras duas
não caguei tanto nas cuecas ...
O curioso é que tais quedas de pressão sempre me ocorriam
quando voava com o excelente Kitfox.
Comecei a culpar o regime de giro do motor, mais alto do
que o giro do VW , que equipavam meus tequinhos anteriores. Com eles nunca me
ocorreu um único começo de apagão. Minha pressão só caía no Kitfox.
Há um ano e pouco, depois de ter vendido o Kitfox, sei lá
por qual motivo comecei a pensar no assunto que me levara quase a abandonar a
aviação:
Descobri, depois de ter jogado muito do entusiasmo pelo
voo janela a fora que, de fato, minha vista nunca escurecera, nunca estivera
quase desmaiando de fome ou sede.
Mas o que acontecera, então?
Todos os tequinhos que eu tivera antes não tinham teto
solar.
Assim, como o meu último Kitfox, todo modernoso, tinha teto
solar e tal, quando eu passava embaixo duma nuvem, logicamente o interior do
avião escurecia subitamente, pois a luz que entrava por cima sumia, o que nos
outros pouca diferença fazia, por não haver iluminação pelo teto.
E eu achando que estava me despedindo dessa ...
Como diria o Deoclécio, aquele peão do Alegrete que está
querendo fazer o PP:
- O Lambe-Lambe bem que mereceu o outro apelido de
Piloco. Como é que um animal desses, mesmo sabendo que podia desmaiá de soco,
voando solito, voô por mais deiz ano?
Ainda bem que não era defeito do organismo do desinfeliz, mas só um causo de
teto de corno, que os afrescotiado chamam de solar. Se fosse esses causo de
pressão do coração baxa, tava morto e enterrado.
- Qué dizê: inté era poblema de saúde e dos mais grave. Todo esse tempo avoando encagaçado só por miolo mol.
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