sábado, 5 de junho de 2021

O Avião que Ficou


 

         Num distante dia de outono ou inverno do ano da Graça de mil novecentos e sessenta e dois um grupo de crianças, na falta de coisa melhor a fazer, comia bergamotas nos fundos da Fazendola (ex-fazenda) Bom Retiro,  no  desconhecido e antes denominado município de  São Vicente, naquele dia chamado General Vargas, futuro São Vicente do Sul ...

         Eis que de repente, sem prévio aviso, começa uma ronqueira de motores possantes fazendo eco na serrania para as bandas da Vila Mata.

         Aquele piazedo até estava acostumado com ronco de motores de avião, pois dita ex-fazenda, agora pouco  mais do que uma chácara por causa da divisão entre os herdeiros, estava localizada bem na rota dos aviões de linha comercial regular que vinha da capital para, pousa aqui e ali, chegar até Uruguaiana e São Borja. Mas os "aparelhos" passavam alto, isso amortecendo em muito o som das aves metálicas. Assim, muitas vezes a gurizada não conseguia visualizar a condução aérea dos felizardos ricaços que faziam suas viagens em tão maravilhosas máquinas.

         Naquela época voar de avião para nós não passava de um sonho distante, irrealizável. Isto só estava ao alcance de fazendeiros, doutores, advogados, engenheiros, comerciantes fortes, políticos de destaque e seus assessores nem tão destacados,  mas mui astutos ...

         Só que neste  dia nublado, estranhamente, o ronco era muito mais forte e, sem mais nem menos, nos surge aquele monstro alado quase tocando no topo das coxilhas, vindo em nossa direção.

         Uns piás gritaram:

         - Vamos correr que vai cair e pode ser em cima de nós.

         Alguém da turma foi mais sensato:

         - É melhor a gente ficar olhando e só correr quando se tiver certeza, pelo rumo que tomar,  do lugar onde vai bater no chão.

         Ficamos ali, paralisados de terror e maravilhados pelo privilégio de ver um avião de perto, duas enormes emoções.

         Acabamos um pouco decepcionados quando tivemos a certeza de que, se caísse, não iria ser tão perto de nós, pelo novo rumo que o piloto tomara.

         E lá se foram, avião, piloto, co-piloto, aeromoça, passageiros endinheirados, políticos espertos e os infalíveis "piolhos-de-rico", raça que, como a das baratas, sempre existiu e nunca deixará de existir, no rumo do campo de aviação de Santiago.

         Claro que  nenhuma criança queria um morticínio, mas, confesso, todos nós ficamos chateados por que não seria daquela vez que iríamos conhecer um avião de perto.

         Não duvido que algum, alguns ou todos, inclusive o escrevinhador, houvessem torcido pelo pouso forçado num campo ali perto. Afinal, já houvera casos de avião cair em campos e lavouras sem que ninguém houvesse morrido.

         "O que custava fazer um pouso de emergência ali na Palma e encher de alegria e felicidade o coração daquela gurizada? Não houvera uns  anos antes o pouso dum avião pequeno, ali na estrada da Vila Mata, com os dois homens que estavam neles saindo sem nenhum arranhão?"

         E aquela foi a sensação do dia, da semana, talvez do mês.

         E mais: não duvido de que aquela passagem rasante, abaixo da camada baixa, que lambia os cerros da Mata e  Taquarixim seja a culpada de este retratista/escrevinhador haver feito enormes sacrifícios para cursar o PP, pelear outro tanto para comprar seu primeiro ultraleve e continuar voando até os presentes sessenta e oito invernos.

         O DC-3 da saudosa Varig felizmente não caiu, deve ter chegado ao seu destino ou, na pior das hipóteses, alternado para algum pouso seguro.

         Mas nem a Varig, nem o piloto, nem a aeromoça tiveram ideia do quanto marcaram os corações daquela humildes crianças, filhos de meros agricultores agregados, simples vendedores de livros, sendo que um dos piás era órfão de pai, todos jamais acreditando em realizar o sonho de um dia sair do chão.

         Certas coisas vêm no 9gene e não duvido que lá numa d⁷as ínfimas moléculas de DNA tenha vindo a ordem: este aí tem que voar um dia.

         Mas também não duvido que aquele DC-3 passando baixo pela Palma, lambendo coxilhas, seja o culpado por haver um pobre fotógrafo empenhado até a alma para conquistar seu brevê e continuar suando sangue para ter suas próprias maquininhas voadoreas, simples, elementares, mas voantes.

         Claro que muitos invejam aqueles que têm o privilégio de voar, que quase a maioria dos humanos sonha em ter asas. Mas raros são os capazes de qualquer sacrifício para realizar o sonho de dar uma rasteira na lei da gravidade.

         Como diz aquele ditado: só quem voa sabe porque os passarinhos cantam.

         Este desejo ancestral, esta busca primeva está em todos, e felizes os que conseguem realizá-la.

         Meus profundos e sinceros agradecimentos a S. Pedro, que forçou aquele comandante, nos tempos heróicos da aviação a voar ciscando, que adivinhou onde estava aquele piazedo de campanha para, qual um piloto agrícola, fazer um tiro perfeito lançando, não azevém, mas a semente da aviação.

         Pelo menos uma  germinou.

         Palma, junho 2021.



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Vídeo do DC restaurado voando de Floripa a POA. 

https://www.youtube.com/watch?v=JRwi6bILrEc

        

2 comentários:

  1. Belo relato, amigo, parabéns. Fiz uma viagem no tempo, imaginando as crianças na campanha, onde também me criei e fiz o primeiro ano escolar a cavalo. De outra sorte, já adulto, matutando como era quase impossível fazer uma viagem de avião comercial que não fosse custeada por algum empregador, em função do alto custo das passagens. Quando fui contratado, em 1975, por uma empresa paulista, que foi tua cliente, onde nos conhecemos, realizei esse sonho, mas sestroso uma barbaridade. Lembrei até de uma obra do Padre José Aripe, do Alegrete, intitulada A primeira viagem do grosso de avião. Grande abraço.

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  2. Meu primeiro "Nobre Constituinte":
    Desculpa a demora em ler o teu comentário. Ando numas correrias por aqui.
    Tu foste privilegiado em estudar na campanha indo pra "sala de aula" a cavalo. Eu, pobre coitado, ia "de a pé". Pior, de pés descalços. A gente até tinha calçado, mas sapato bom não deixavam a gente usar na grama molhada pois estragaria o pisante. Saíamos de casa de tamanco, mas, andar de tamanco na geada era um tsl de escorrega aqui, quase cai ali, que a gente preferia levar os tamancos na mão ou na "Buchaca", nossa mochila de pobre, pendurada à meia espalda, deixando as mãos livres para o infalível bodoque.
    Tempos sofridos, alegres, felizes.
    Sempre digo e escrevo que a gente devia nascer velho e ir remoçando, remoçando, até morrer nenê, fazendo um berreiro, não de medo da morte, mas por ter que deixar uma vida tão boa, como a que a gente só tem na infância.
    Abração.

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