Passei por Santa Maria,
Em Restinga fiz retrato.
Devidamente aliviado,
Dei-lhe as esporas no flete.
Tirei retrato e, dali
Num distante dia de outono ou inverno do ano da Graça de mil
novecentos e sessenta e dois um grupo de crianças, na falta de coisa melhor a
fazer, comia bergamotas nos fundos da Fazendola (ex-fazenda) Bom Retiro, no desconhecido
e antes denominado município de São
Vicente, naquele dia chamado General Vargas, futuro São Vicente do Sul ...
Eis que de repente, sem prévio aviso, começa uma ronqueira
de motores possantes fazendo eco na serrania para as bandas da Vila Mata.
Aquele piazedo até estava acostumado com ronco de motores de
avião, pois dita ex-fazenda, agora pouco
mais do que uma chácara por causa da divisão entre os herdeiros, estava
localizada bem na rota dos aviões de linha comercial regular que vinha da
capital para, pousa aqui e ali, chegar até Uruguaiana e São Borja. Mas os
"aparelhos" passavam alto, isso amortecendo em muito o som das aves
metálicas. Assim, muitas vezes a gurizada não conseguia visualizar a condução aérea dos
felizardos ricaços que faziam suas viagens em tão maravilhosas máquinas.
Naquela época voar de avião para nós não passava de um
sonho distante, irrealizável. Isto só estava ao alcance de fazendeiros,
doutores, advogados, engenheiros, comerciantes fortes, políticos de destaque e
seus assessores nem tão destacados, mas
mui astutos ...
Só que neste dia nublado, estranhamente, o ronco era muito mais forte e,
sem mais nem menos, nos surge aquele monstro alado quase tocando no topo das
coxilhas, vindo em nossa direção.
Uns piás gritaram:
-
Vamos correr que vai cair e pode ser em cima de nós.
Alguém da turma foi mais sensato:
- É melhor a gente ficar olhando e só correr quando se tiver
certeza, pelo rumo que tomar, do lugar
onde vai bater no chão.
Ficamos ali, paralisados de terror e maravilhados pelo
privilégio de ver um avião de perto, duas enormes emoções.
Acabamos um pouco decepcionados quando tivemos a certeza de
que, se caísse, não iria ser tão perto de nós, pelo novo rumo que o piloto
tomara.
E lá se foram, avião, piloto, co-piloto, aeromoça,
passageiros endinheirados, políticos espertos e os infalíveis "piolhos-de-rico",
raça que, como a das baratas, sempre existiu e nunca deixará de existir, no
rumo do campo de aviação de Santiago.
Claro que nenhuma
criança queria um morticínio, mas, confesso, todos nós ficamos chateados por
que não seria daquela vez que iríamos conhecer um avião de perto.
Não duvido que algum, alguns ou todos, inclusive o
escrevinhador, houvessem torcido pelo pouso forçado num campo ali perto.
Afinal, já houvera casos de avião cair em campos e lavouras sem que ninguém
houvesse morrido.
"O que custava fazer um pouso de emergência ali na Palma
e encher de alegria e felicidade o coração daquela gurizada? Não houvera uns anos antes o pouso dum avião pequeno, ali na
estrada da Vila Mata, com os dois homens que estavam neles saindo sem nenhum
arranhão?"
E aquela foi a sensação do dia, da semana, talvez do mês.
E mais: não duvido de que aquela passagem rasante, abaixo da
camada baixa, que lambia os cerros da Mata e Taquarixim seja a culpada de este retratista/escrevinhador
haver feito enormes sacrifícios para cursar o PP, pelear outro tanto para
comprar seu primeiro ultraleve e continuar voando até os presentes sessenta e
oito invernos.
O DC-3 da saudosa Varig felizmente não caiu, deve ter
chegado ao seu destino ou, na pior das hipóteses, alternado para algum pouso
seguro.
Mas nem a Varig, nem o piloto, nem a aeromoça tiveram ideia
do quanto marcaram os corações daquela humildes crianças, filhos de meros agricultores
agregados, simples vendedores de livros, sendo que um dos piás era órfão de pai, todos jamais acreditando em realizar o sonho de um dia sair do chão.
Certas coisas vêm no 9gene e não duvido que lá numa d⁷as
ínfimas moléculas de DNA tenha vindo a ordem: este aí tem que voar um dia.
Mas também não duvido que aquele DC-3 passando baixo pela
Palma, lambendo coxilhas, seja o culpado por haver um pobre fotógrafo
empenhado até a alma para conquistar seu brevê e continuar suando sangue para
ter suas próprias maquininhas voadoreas, simples, elementares, mas voantes.
Claro que muitos invejam aqueles que têm o privilégio de
voar, que quase a maioria dos humanos sonha em ter asas. Mas raros são os
capazes de qualquer sacrifício para realizar o sonho de dar uma rasteira na lei
da gravidade.
Como diz aquele ditado: só quem voa sabe porque os
passarinhos cantam.
Este desejo ancestral, esta busca primeva está em todos, e
felizes os que conseguem realizá-la.
Meus profundos e sinceros agradecimentos a S. Pedro, que
forçou aquele comandante, nos tempos heróicos da aviação a voar ciscando, que
adivinhou onde estava aquele piazedo de campanha para, qual um piloto agrícola,
fazer um tiro perfeito lançando, não azevém, mas a semente da aviação.
Pelo menos uma germinou.
Palma, junho 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=JRwi6bILrEc