A oração do Pai Nosso, em seu finalzinho, pede para que fiquemos
livres dessas quedas.
E uma classe que sofre muitas tentações é a dos pilotos. Vamos
citar algumas das maiores, quando o diabinho tentador fica cochichando no
ouvido da gente:
- Dá um raso a "fu"! Ela tá te olhando! Pode ser
que, vendo tua coragem, esqueça tua feiúra!
- Com essa gasolina dá para ir e sobra!
- É só uma quedinha de magneto! Se falhar, tem o outro!
- O vento tá fraco! E vai amainar!
- Pra que checar de novo, se voaste ontem?
- Vai só tirar um fino!
Nessas e noutras tentações muitos caíram! Literalmente.
Pois hoje vou falar duma tentação especial, em que o manicaca
aqui já caiu duas vezes, a de demonstrar o "aparelho" para interessado
comprador.
Já contei o caso em que fui demonstrar um Netuno, lá por 2003
para o Luques e quase nos matamos.
Cachorro comedor de ovelha e piloto cabeçudo, só matando! O
sujeito não aprende!
Senão, vejamos:
Estou com meu Kitfox Americano, motor Rotax 912, 1996 (olha o
merchandising!) à venda. Além de aparecerem os curiosos que só contatam para
encher o saco, tem os que são do ramo e, realmente, querem adquirir um
excelente teco (merchandising de novo ...).
Foi o caso de dois uruguaios que moram em Rivera. Ligaram,
marcamos e numa bela manhã de domingo, apareceram para avaliar o aviãozinho,
que tem uma das mais rápidas e melhores reações de comando que conheço (dê-lhe
merchandising).
Era bela a manhã e só não perdia a beleza porque vento não se
enxerga. Se desse para ver, seria horrorosa ... Mas estava fortezito!
Os compradores chegaram, vi que gostaram do teco, pois é um
convencional, com carenagem imitando a de motor radial, realmente um aviãozinho
que agrada à primeira, segunda e muitas vistas.
Senti que estavam gostando e que havia boas possibilidades de
negócio.
Examinaram o que puderam, mas, claro, ninguém compra avião
usado sem vê-lo voando.
Liguei o Rotax 912, que não me decepcionou e pegou de primeira. Demonstrei o que deu,
com o tequinho parado, mas tinha o tal diabinho cochichando: "Se não voar,
é difícil de sair a venda!"
- Com esse vento, acho arriscado até uma corrida na pista!
Concordaram:
- Sim, não te preocupa, não vamos nos arriscar a quebrar a
aeronave. Podemos voltar outro dia!
Mas o tentador replicou baixinho no meu ouvido:
- Mas não voltam! Dá pelo menos uma corridinha na pista, para
mostrar a potência e o torque do Rotax 912, para os 300 kg do
"aparelho". Vão ficar impressionados!
Perguntei se algum deles gostaria de fazer a tal corridinha na
pista, e, felizmente, um aceitou, o que tornou o avião um pouco mais pesado
para enfrentar o "ventinho", segundo o cochichante.
Pois o ventinho era de dobrar as taquareiras e as pontas das
árvores da chácara. Não tenho anemômetro, mas no medidor crioulo da inclinação dos
galhos e ângulo reto da biruta, menos do que 25 km por hora é que não havia de
ser a velocidade. Nas previsões, para a região, o mínimo era de 26, chegando
aos 36 km/h.
E a recomendação é de que não se deve enfrentar ventos de
través, na decolagem ou pouso, superiores a 17 km/h. Isso para aviões mais
pesados, como Paulistinha, Aero Boeiro, etc.
A vontade de vender era grande, os homens estavam
interessados, tanto que um teve o peito de vir de saco.
- É só uma corridinha na pista! Ele vai se deslumbrar com a
potência! - me cochichou a vozinha.
Cheque de cabeceira, aceleração da manete, lá nos fomos com o
vento bem de través, a noventa graus pela direita.
A cabeceira em uso inicia com a "sombra" das
frutíferas e outras árvores vindo justamente deste lado. Por isso dou-lhe aileron
direito, para baixar a asa e, assim,estar prevenido para o vento real.
Tudo ia bem senão quando termina a "sombra" e tomamos uma senhora rajada pela direita, levemente de frente, o que aumentou
bruscamente a sustentação.
Deu a lógica: o teco "despegou-se" como dizem os
castelhanos.
Despegou-se, tentou aproar o vento e, talvez por um efeito
lift da coxilha onde fica a pista, a asa direita ergueu-se, nem ligando pro meu
comando de aileron, pois estava a baixa velocidade.
Sempre tive comigo uma ideia bem gravada na caixa de adubo: se
a coisa está preta, a menos de metro do solo, tenta não aumentar a chance do
agente funerário e procura voltar à pista. É melhor uma queda de asa com o trem
quase tocando, do que entrar em faca numa altura maior.
Cortei motor, tive sorte que a rajada deu uma folga, o Kitfox
voltou a tocar a pista, felizmente sem violência, com a asa esquerda lambendo a
grama e já saindo campo a fora, literalmente.
A ventania que empurrava o estabilizador vertical era mais
forte do que os comandos que eu dava: pedal esquerdo, freio esquerdo arrastando
roda e eu no rumo das capoeiras. E a torcida para que os tatus e zorrilhos não
tivessem trabalhado durante a noite, abrindo alguma toca na lateral do
"aeródromo".
Já contava como certa uma pilonagem, com o trem caindo numa
toca ou trancando nalgum cupim ou macegão.
Acho que a rajada deve ter diminuído bastante, pois o valente
tequinho começou a obedecer ao pedalaço e freio esquerdo, rumando, aos poucos,
para dentro da pista.
Sorte ou perícia, vou lá eu saber? Ocorreu que dominei o
bichinho, levei-o para a cabeceira oposta e, aí, completei a cagada.
Falei para o uruguaio:
- Agora, sim, tu vais ver o que é potência, pois dessa
cabeceira a pista é a subir!
Afundei a mão e, como estava prevenido, não havendo saída de
sombra de árvores, iniciei a corrida oposta que, por sorte ou mão do Piloto
Maior, terminou sem maiores danos, a não ser eventual troca de cuecas de piloto
e saco.
Não sei por que a tal vozinha cochichante sumiu.
E esclareço: a venda também foi pro brejo.