Demonstrando
o Netuno
O Netuno foi a minha primeira aeronave. Como toda a
primeira, marcou profundamente, inclusive na hora de vender.
Este escrevinhador, nas horas em que
não fotografa, até trabalha como advogado e, lá pelas tantas, uma certa Universidade
– a ULBRA, posso dizer o nome, pois o assunto foi devidamente julgado, inventou
de usar indevidamente uma foto feita por mim, sem autorização, sem dar os
devidos créditos e alterando de colorida para foto em preto-e-branco.
Fiquei uma arara. Tentei um acordo, não
quiseram e tive que entrar com uma ação pedindo uns trocados de indenização por
violação de direitos autorais.
A
condenação deles permitiu que comprasse um Kitfox, aviãozinho louco de
especial, mas, como não consegui ficar rico até agora, é claro que não poderia
ficar com dois ultraleves. Restava, então, vender o Netuno.
Mas quem diz que se conseguia
comprador. Acho que gastei quase metade de seu valor em anúncios, e, nada ...
Até que surgiu um interessado, coisa
de não se desprezar de jeito nenhum. Sabia lá quando apareceria um outro?
Dito comprador era um piloto
agrícola de Uruguaiana. Estava realmente interessado, tanto que se largou lá da
fronteira com a Argentina até Porto Alegre, de ônibus, coisa dumas dez horas de
viagem.
Sábado pela manhã, lá pelas sete
horas, toca o telefone. Era o dito, avisando que já estava aguardando, na
Rodoviária. Olho para fora, e vejo a
coisa mal parada. Aquela garoazinha típica de inverno, duradoura na certa, me tirava a possibilidade
de fazer o ‘Marimbondo” voar. Todo o mundo sabe, para efetivar a venda, nada
como deixar o comprador babando de vontade de poder, em definitivo, gozar as
delícias dum bom vôo.
A pista ficava em Itapuã, a 38 km , sendo que 14 deles em
estrada de terra, ruim para mais de metro. Tudo contribuindo para criar um
clima de não venda. Imaginem o sujeito entrar numa buraqueira depois de 10
horas de ônibus ...
Mas agüentou firme os buracos e o
barro. Chegamos ao hangar, checamos o ultraleve e, embora garoasse, resolvi,
pelo menos, fazer roncar os 2.200 cm3 do motor Volkswagen que, aliado ao tipo
de surdina fazia um barulho impactante, parecendo com o de um avião “adulto”.
E quem diz quer o motor pegava.
Ficamos um tempão dando corda, examinando velas, corda de novo, distribuição, carburador, mais
corda e, pegar que era bom ...
Umas duas horas depois a coisa
funcionou. Aí, para comprovar de que eu
realmente falara a verdade ao dizer que aquilo não era normal, era dar hélice
apenas uma vez e o bicho roncava bonito.
Pelo
andar da carruagem, já dá para ver o que se preparava. Sem mais nem menos
começamos a achar que a garoa amainara, que o vento Minuano diminuíra de
intensidade, que dava para dar umas corridinhas na pista, por que não?
E lá nos fomos. Como a pista era do
tipo primeira metade em subida e a segunda a descer, não era possível decolar e
pousar em frente, pois faltaria espaço para a frenagem.
Corrida vai, corrida vem, um piloto
agrícola, que é classe de gente muito peituda e um ultraleveiro com uma certa
bagagem, começou a disputa interior de vaidade. Eu pensava: ‘Se não convido
para um vôo, vai ficar achando que sou cagalhão.” Ele, decerto: “Se me convidar
aceito, pois se não, me desmoralizo”.
A disputa de beleza veio à tona:
- O que tu achas? A garoazinha não
dá nada e o vento praticamente parou.
Realmente, naquele exato momento
houvera uma calmaria.
- Estou por ti. Tu é que sabes o que
dá para fazer com o Netuno.
-
Então vamos
nessa.
A corrida e a decolagem foram
tranqüilas, mas quando saímos da “sombra” dumas figueiras e outras árvores o
pau quebrou. O vento que parecia quase parado lá embaixo, no alto era uma tormenta. Era um tal de sacode, joga prá
cima, atira prá baixo, empurra de lado, derruba uma asa, que não sei como
consegui manter o controle.
“Mas onde é que eu estava com a
cabeça? Me jogar numa garoa com vento que nem essa? E ainda por cima com um
co-piloto? Se só quebrar o avião no pouso, estou num baita lucro, isto é se
tiver pouso ...”
Que sinuca de bico: se ficava baixo,
pegava a turbulência do terreno e da vegetação, se subia um pouco o vento era
aterrorizante. O jeito foi ir até um meio termo, onde desse para tentar uma
curva. Chegando à altitude que julguei adequada, esperei um momento de relativa
calmaria, desses que quase sempre vem depois duma turbulência forte, cedi o
manche para ter um pouco mais de velocidade, pois quando pegasse o través e o
vento pela cauda, o velocímetro cairia um monte.
E dê-lhe berrar:
- Fica tranqüilo que está tudo sob
controle!
Só o vento e a garoa acreditavam ...
Veio o momento crucial da curva. Fiz
com a maior derrapagem possível, que, com um ventão daqueles, oferecer a asa
era um brinde às funerárias. Chegou a fase da transição em que o vento, antes
de proa vai mudando pro través e, finalmente, para a cauda. Em quanto cairia a
velocidade? Haveria sustentação suficiente? O coração na boca, pé e mão
trabalhando freneticamente para manter o ultraleve voando. Chegou o famigerado
vento de cauda, velocidade caiu, mergulhamos um pouco, mas nos mantivemos em
vôo.
- Isto é normal. Já peguei coisa
muito pior – menti descaradamente.
A aproximação prometia uma
turbulência de respeito. Inicialmente pegava-se um coxilha com uns pinus no
alto, depois uma descida cheia de coqueiros e, lá embaixo, muito lá embaixo,
começava a pista, em elevação até a primeira metade, depois descida. Ou se
pousava antes da metade inicial ou ...,
isto em circunstâncias normais ...
Com aquela turbulência toda não dava
para entrar lento, arriscando a perder os comandos. Entrar veloz significava
alto risco de não parar antes da cabeceira oposta, que era um aterro duns três
metros seguido dum descidão, quase pirambeira, destruição certa do avião e
muitas chances de quebraduras ou pijama-de-madeira.
Decisão: entro veloz, atiro-o na
pista assim que passar a maldita cerca, tento frear, caso não consiga segurar
normalmente, cavalo–de-pau e seja o que tiver que ser.
E nos viemos.
De tanto manche e pé, já nem batia
‘schimmier’, fazia gemada.
O co-piloto com uns olhos que eram
uns patacões.
Nunca
menti tanto em tão pouco tempo:
- Fica frio. Já pousei aqui em tempo
pior.
Passamos ‘pinus’, coqueiros, cerca,
chegou a pistinha. Joguei no chão o bicho, mas, para surpresa o toque foi suave e, antes mesmo do
topo, estávamos parados.
Com um ventão daqueles, era evidente
que a parada seria curta assim que tirasse o motor. Agora é facil chegar a essa
conclusão elementar, mas na hora do pavor, atento principalmente à necessidade
vital de se manter voando, não dá para fazer muitos cálculos, dá?
Sentindo que apavorara o comprador, tentei remendar com
comentários do tipo:
- Com uma garoa e um Minuano desses
a gente nunca voa de ultraleve: fica nos pelegos com a prenda ou tomando um
mate no galpão, proseando, jogando carta, essas coisas. Ultraleve é para dia
calmo, sem vento, pela manhã, quando ainda não há térmicas.
- Bah, tchê, me apavorei com o
quanto vocês têm que usar os comandos. Não paraste um minuto.
- Com um vento desses, primeiramente
tu não voarias nem um Ipanemão . Em
segundo lugar, se voasses, trabalharias quase a mesma coisa.
Mas não teve jeito.
Além de não vender o Netuno, acho
que espantei um futuro ultraleveiro para todo o sempre.
Ah, o tal piloto ex-interessado era e é o Luques. Embora tenha levado aquele susto, acabou comprando outros aviões leves. Agora possui um Águia - que é a cópia brasileira do Kitfox.