terça-feira, 16 de agosto de 2011

Deoclécio, o Peão Voador - No Rumo do Banco






   De fato: na sexta-feira, ainda escuro, com uma geada que branqueava mesmo naquele breu, de tão forte, lá se iam Corredor dos Correia a fora, o Ventania, troteando em três patas por causa do geadão, a égua Xuxa, com o cavaleiro e futuro piloto de aparelho Deoclécio, até com as mãos cobertas por um poncho dos bons, fabricação antiga, dos que aguentam chuva e mais chuva, sem passar uma gota dágua.

   O Ventania continuava encafifado com aquele enloucamento de sair no escuro, sem destino de campo, mas pela estrada, numa friagem de renguear cusco e até cachorro de serventia que nem ele próprio. " Hay que ser cosa da maior importância" pensou o guaipeca, entreverando português com espanhol, que naquela região até os bichos são poliglotas, mesmo em pensamento.

   E prosseguiu dando tratos à bola: "Carência de china no hay de ser pero que desde que conquistou aquela finória do povo, lá nas aulas de Aparelho, pelo menos uma vez por semana o peão descarrega as ansiedades ... Que havera de ser, então?"

   "Bueno, ele é humano e eu sou bicho. Cada um no seu cada qual. Ele que se ajeite com os seus assuntos que eu vou para os meus. Bem que poderia aparecer um sorro comedor de borrego para eu dar uma treinadinha nas caçadas. Mas com esse frio, acho meio dificultoso o acontecimento. O jeito é continuar troteando em cima desta geada que congela as patas e as pernas de qualquer vivente. Ele no bem-bom, com um poncho e eu, de em pelo, cara para o frio. Depois a gente inventa de refugar as jornadas e eles não sabem porque ..."

   "A que horas será que abre o banco? Quero ser o primeiro a entrar. Se o gerente for turco, vai ser obrigado a me dar financiamento. Dizem que essa gente não pode perder o primeiro negócio de jeito nenhum. Chego sem rodeios e lasco: - Careço de trinta mil para o Curso de Apareio. De garantia le dou minha palavra, a Xuxa e os meus rendimento como capataz na Fazenda do seu Ponciano, que o senhor muito bem conhece. Numa volta, ele próprio até pode avalizar. E não me venha com essas frescura de estar acima do limite, de não ter competência para essa operação. Bamo pará com esse negócio de banco só dá pila pra quem não carece. Ou financiam meu Curso de Apareio ou espaio por toda a frontera aquela história do financiamento da lavora do castelhano aquele, que pegou os troco e sumiu no mundo. Dizem que a D. Dilma tá querendo fazê uma limpeza nas maracutaia. É meu Curso financiado contra sua continuação como gerente. E le adianto, não me paro assustado pra macho nenhum. Adonde é que eu assino o contrato?"

   Essa era a prosa costurada para o seu pedido de empréstimo. Estava tudo gravado na mente. Nem era preciso ir pensando nisso.

   Agarrou, então, a assobiar "Querência Amada".

   Num tapa e as três léguas até a cidade estavam vencidas.

   Nem bem clareara o dia o peão estava justo confrontando com o bolicho do Anacleto. Este ainda não abrira o estabelecimento. Sequer a folha superior da porta, que era usada para os atendimentos de emergência, tal como palha, fumo em corda, açúcar, café, etc., fora destrancada. A parte inferior só era aberta lá pelas dez da manhã, quando, aí, sim, era permitida a entrada de fregueses de mantimentos e os de líquidos, especialmente canha, daquela que matou o guarda.

   Uma fumacinha saía pelas frestas do galpão, sinal de que o Anacleto já estava, como de costume, chimarreando e organizando as ideias para arrumar um jeito de pôr mais água na cachaça, sem que os mamaus se dessem conta.

   Como era amigo do homem, gritou "Ô de casa, sou eu, o Deoclécio" e foi abrindo a porta de folha de zinco.

   - Buenos dias! Como le vão as cosa? E os de casa? Mas que baita geadão!

   - Se levando, se levando. Ainda que mal pergunte, que bicho le mordeu pra já estar por aqui, nestas hora e com essa baita friagem? E a fazenda, o seu Ponciano? Tudo em ordem.

   Cumprimentaram-se ao jeito fronteiriço, tocando as mãos, depois o antebraço e, finalmente apertando levemente aquelas.

   - Bueno, careço de arrumá financiamento pro meu Curso de Apareio e vim falá com o gerente do banco. Sem pilotá é que não fico.

   - Será que esses loco liberam o capim prá esse tipo de cosa? Eles gostam, mesmo é de emprestá pros rico. Pobre que nem nós, veve apertado e de teimoso.

   Ao que o Deoclécio retrucou:

   - Tenho meus argumento. Le garanto que no final do dia passo aqui de guaiaca estufada de patacão.

   O Anacleto, bolicheiro velho, sabedor de tudo e sobre todos, conhecia o quanto era teimoso aquele índio e sua fama de não entregar a rapadura assim, no más.

   - Se o amigo tá dizendo, até aceito umas sobrinhas ...

   E riram, enquanto este alcançava ao recém-chegado o mate de erva da Palmeira, amarga que nem beijo de despedida.

   - Mas me conta, morreu muito borreguinho com essas geada encordoada uma na otra? Faiz anos que não temo um inverno brabo que nem este! Ando até com umas dor nas cadera, que não me apareciam faiz tempo. De o vivente entanguir de frio só botá o nariz pra fora das casa, de madrugada. Nem sei como o Ventania não refugô a vinda.

   - E ele é bobo de deixá de vi pra bombeá as cadela reinando ... Quantoo aos borrego, temo um trabalhão graúdo, mas recolhemo a bicharada todas as noite. Perdemo uns dois ou três, por meio flaquito e pesteado. E o patrão mandou vi uns reforço de bóia. Ração especial, que recupera as energia das mãe. Com elas dando bom leite e em quantia, os bichinho vão guapeando.

   Prosseguiram a prosa, sem se darem conta do passar do tempo.

   - A la fresca, Anacleto, pela altura do Sol, o banco já deve tá aberto e eu ainda aqui. Tinha que ser o premero a entrá, pois diz que esses turco nunca podem perdê o primeiro negócio. Careço de me mandá a la cria. Continuamo a prosa pelo escurecê, quando tivé voltando.

   Montou na Xuxa, assobiou pro Ventania que já andava rusgando com os rivais da cidade e saiu num trote forçado.

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