sábado, 12 de dezembro de 2020

Primeiro e Único "Looping"


 

            Lá pelos mil novecentos e oitenta e dois anos da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, andava este escrevinhador metido com  fotografanças e revelaçõeos coloridas no Balneário de Camboriú, no tempo em que lá ainda cabia gente ...

            Pois tirava retrato de crianças na praia, pelo método analógico, ia correndo para casa, revelava em laboratório manual colorido, e, no mesmo dia, antes da noite, lá estava o "Lambe-Lambe" com uns trocados no bolso para pagar aluguel, peixinhos, camarões, etc. ...

            Não deu para ficar rico, mas que veraneei de dezembro a primeiros de abril, ah, isso veraneei ...

            Como já tinha cancha com fotos esportivas, pois durante a temporada automobilística cobria corridas no Rio Grande do Sul, especialmente nos Autódromos de Guaporé e do Tarumã, na Grande Porto Alegre, ao ver o pessoal do voo livre pousando na Praia das Laranjeiras, fui prosear com a rapaziada e oferecer meus serviços.

            Conversa vai, conversa vem, acabamos fechando um acordo onde eles teriam excelentes fotos de seus voos e pagariam com o Curso de Piloto de Voo Livre ou Asa Delta.

            Fechado dito acordo entre partes, lá se foi o futuro homem-voador para a Praia dos Amores, em Itajaí, para iniciar a parte prática do curso, que consistia, inicialmente, em correr na praia, contra o vento, dominando a asa.

            Como fala-se no jargão juridiquês, cumpre salientar que o novel aluno-fotógrafo até aquele momento só tinha como experiência de voo duas viagens a São Paulo, em aviões de carreira. Nunca entrara num teco-teco, ultraleve ou coisa parecida. De aviação pequena e desportiva entendia tanto quanto de capação de touro ...

            Passou-se a primeira etapa das corridas na praia sem maiores surpresas tanto para mim, quanto para os demais alunos e instrutor.  Tanto não houve novidade que, confirmando a fama dos praticantes de muitos esportes radicais, naquela turma, o único que não fumava um baseado era o fotógrafo ... Mas, a bem da verdade, diga-se que o instrutor era severíssimo no zelo pela segurança sua e dos aprendizes. Se pegasse alguém tomando um gole de cerveja ou dando uma única tragada, antes e/ou durante as aulas  pronto, gancho de vários dias sem poder voar.

            Passamos para a etapa dos voos rasantes em descida. A gente decolava e voava a um, dois metros do solo, pousando em frente. Aí tive um pequeno incidente que poderia ter custado caro: lá pelas tantas perdi o controle da asa e, em velocidade, bati com o joelho direito numa pedra. Não quebrei ou desloquei nenhum osso, mas a coisa incomodou durante meses.

            Esse pessoal do voo livre não é de desperdiçar muito tempo. Acho que foram uns dois ou três dias de voos rasantes. Logo a seguir, a hora da onça beber água: voo a partir dum morro de trezentos pés de altura, mais ou menos, na mesma Praia Brava, de Itajaí. Dito morro tinha uma rampa de decolagem improvisada, com mera limpeza de arbustos e outros vegetais parecidos, com um carreirinho por onde a gente devia dar a corrida inicial e partir para o abraço.

            Dia nublado, vento Lestão pegando forte. Os outros colegas de turma já haviam feito o seu primeiro voo e naquele dia o único estreante era o fotógrafo. Um ou dois decolaram na minha frente, pousando sem maiores novidades, na praia, lá embaixo, num campinho de pouso bastante estreito, margeado por uns arbustóides de mais ou menos meio metro de altura, em cuja base  crescia uma dessas ramagens rasteiras cheias de espinho.

            Como era uma única asa tipo "bacalhau" para todos, entre o aluno fazer seu voo, desmontar a asa lá na praia, subir o morro, montar novamente, lá se ia uma hora ou mais. Assim, quando chegou minha vez, era bem à tardinha e o Lestão aumentara.

            - Acho que o vento tá muito forte. Quem sabe deixamos pra outro dia - falei.

            - De jeito nehum, respondeu o instrutor. Ou voa agora ou ficas encagaçado para sempre e não apareces mais. É o que mais acontece. Arrepiou do voo no primeiro dia, quase certo que é um voador a menos. Podes confiar que dá tranquilo.

            Confiei, mas sem tranquilidade ...

            Pois bem, vesti o equipamento, prenderam o "mosquetão" à asa e lá fiquei eu, segurando a "bacalhau" contra aquele baita vento, aguardando o "Vai!"

            E o "Vai" veio, mesmo.

            Dei uns dois ou três passos e em fração de segundo estava eu, sem saber como, em pé, em cima da asa, no mesmo lugar do início da curtíssima decolagem e execução do mais fechado "looping" pós-decolagem de todos os tempos, tudo feito num "cubo" de cinco ou seis metros ...

            - Viram, eu disse que não dava. Taí a prova. O Lestão tá demais. Desisto por hoje.

            - Na, na, ni, na, no. Vais voar, sim, e hoje.

            E o instrutor era categórico.

            - És gaúcho ou o quê?

            Quase que respondo:

            - Sou o "quê", mesmo. E não vou voar.

            Mas tinham mexido com os brios do guri de Santa Maria. Resolvi encarar.

            E lá estava o sujeito pronto para novo "primeiro voo".

            E se veio o temido "Vai".

            Fui, não fiz outro "looping", mas em um segundo o forte "lift" me erguera a alturas estratosféricas, pois vi o instrutor e demais alunos pequeninos lá embaixo, gritando e gesticulando furiosamente:

            - Pica ela! Pica!

            Pelo tom de voz estavam apavorados.

            Encomendei minha alma e tratei de picar o "aparelho".

            Acontece que sou baixinho, braço curto e, para levar o trapézio para trás, a fim de picar,  tive que espichar braços, mãos, dedos, até as unhas. Felizmente a coisa funcionou e a asa começou a andar para a frente.

            "Acho que vou conseguir pousar. Como e onde, não sei".

            A estas alturas estava desalinhado com a pistinha de pouso. Lembrei-me do espinharedo e tratei de corrigir.

            Não é que a asa respondeu? Como não possuía experência com aproximações e pousos, tive a impressão de estar dentro dum grande videogame, onde em vez de sentir a asa se deslocando, via apenas a pistinha mudando de lugar, lá embaixo, muito lá embaixo...

            Mas gaúcho não se afrouxa e, passado o cagaço, deu até para curtir um pouco o voo.

            Tudo correndo nas normalidades, a pistinha aproada, quase chegando, aguardando o "Cabra" do instrutor-auxiliar, lá na prainha.

            Quando ele deu a ordem, empurrei o trapézio para a frente, ao mesmo tempo em que veio uma rajada meio forte, a quarenta e cinco graus pela direita.

            Pronto, lá se foram as pernas e a bunda do voador para o meio do espinharedo. Nada grave, apenas o equivalente a tomar umas quinze ou vinte injeções dessas bem doídas no sentante.

            Um detalhe: foi também meu primeiro e único voo completo numa asa delta. E tão encagaçante e/ou emocionante que, passado muito tempo, toda a vez que ia falar sobre ele, por milagre, vertia suor na palma das mãos ...

            Quase quarenta anos depois, ainda não ouvi falar de quem tenha quebrado o meu recorde "loopístico".

            E foi uma manobra tão exclusiva, perigosa e exigente, que, sabedor da impossibilidade de superá-la, assumi o compromisso de nunca mais fazer um "looping", essa acrobacia "elementar demais".

            Acredite quem quiser, inclusive eu ...

4 comentários:

  1. Eitaaa "guri" tua história é assustadora mesmo.😂
    Sorte minha que já fiz isso, mais ou menos, entende ? Foi vôo duplo e ameiiii

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  2. Pois é, fia Juliana: teu Veio já aprontou algumas ...

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